POETAS DE ESTETO NA MÃO | Cada um por si

Hoje em dia 

Anda cada um por si...

Faltam nas ruas aquelas palavras amigas

Ou às vezes,

Bastava que as de ódio andassem um pouco mais esquecidas.

Cada um aos seus próprios passos tão limitado,

Com o mal dos outros não está minimamente preocupado...

 

E se para cumprimentar e elogiar a bondade parece faltar,

Para mal dizer, a raiva já parece transbordar.

 

Críticas viraram mais que uma normalidade,

Falamos uns para os outros com uma certa animalidade.

 

Agora percebo que anda cada um por si só para o que lhe convém...

Quem me dera, hoje ainda receber um Bom Dia sincero de alguém.

 

Ninguém? 


Autoria: Diana Santos

Edição de Imagem: Catarina Simões

IV CONCURSO LITERÁRIO | Textos Premiados

Edição de Imagem: Catarina Simões

1º Lugar | União Europeia de Valores - Uma Luta por Direitos Adquiridos

A pedra basilar a partir da qual ressoam quaisquer reflexões sobre Direitos Humanos é, de forma tão invariável quanto justificada, aquele que é o documento traduzido no maior número de línguas do mundo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não obstante o mais alto apreço que à mesma é devido, o imperativo moral da União Europeia não se esgota no cumprimento destes “mínimos olímpicos” consensualizados em sede de Assembleia Geral das Nações Unidas. A União Europeia transcende a noção de um mero mercado único de produtos e serviços, prefigurando uma efetiva comunidade de valores. Assim sendo, uma reflexão compreensiva sobre esta estrutura não pode dispensar o conhecimento dos valores europeus consagrados no Artigo 2.º do Tratado da União Europeia, que podem ser enunciados como: respeito pela dignidade humana, pela liberdade, pela democracia, pela igualdade, pelo Estado de direito e pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. 

O entendimento do projeto europeu supramencionado tem permitido uma melhoria contínua das condições de vida nos Estados-Membro, contribuindo de forma importante para a sua democratização, para a promoção da tolerância e para a manutenção da paz entre os mesmos. Talvez um dos exemplos mais paradigmáticos desta asserção seja o facto de nos encontrarmos presentemente a viver o maior período livre de conflitos armados nesta região, durando a paz entre a Alemanha e a França – que têm sido inimigos históricos – mais de sete décadas. Estas conquistas vieram a ter reconhecimento público mais alargado com a atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2012 à União Europeia, tendo esta, como forma de exaltar a importância da solidariedade enquanto valor europeu, optado por investir o prémio monetário em quatro projetos educativos destinados a apoiar crianças que sofreram a infelicidade de nascer em países onde esses conflitos são uma realidade dramática.

Se, por ora, o projeto europeu é um caso de marcado sucesso, urge a necessidade de zelar pela sua manutenção. Tomar as conquistas por garantidas e optar pela complacência pode, em última instância, comprometer a continuidade da União e levar a efeitos nefastos para a vida de todos os cidadãos europeus – situação que, evidentemente, afetaria de forma desproporcional aqueles que pertencem a minorias e os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Um exemplo que ilustra a necessidade de batalha constante pela manutenção dos direitos conquistados é o ganho de tração, um pouco por toda a Europa, de movimentos chauvinistas de extrema-direita, cuja plataforma assenta sobretudo em teses populistas anti-imigração e, não infrequentemente, opostas aos ideais de respeito pelo multiculturalismo e pelos direitos fundamentais. A oposição aos valores europeus deteriora a essência da União e conduz inexoravelmente a uma situação de ameaça à sua solidez e sustentabilidade. Desta forma, importa batalhar estes movimentos no campo das ideias – desconstruindo simplificações e generalizações grosseiras – e executar uma abordagem sistémica efetiva, que mitigue de forma eficaz a proliferação deste flagelo. A emergência da direita populista não pode ser totalmente desconectada de um sentimento de descontentamento quanto às condições de vida e de uma certa desconfiança em relação às instituições – e, particularmente, em relação à classe política – que são experienciados por determinadas franjas da população. Assim, o combate ao populismo passa necessariamente por uma melhoria das condições de vida, com reformas que valorizem o trabalho e restituam rendimentos às pessoas em situações mais precárias, bem como pelo aprofundamento da transparência em relação às ações dos decisores políticos. Simultaneamente, deve ser fomentada a inclusão sustentada da promoção dos valores europeus nos programas curriculares das escolas, o que corresponde, no fundo, à defesa dos ideais de inclusão, tolerância, justiça, solidariedade e não discriminação.

Para além da resposta à problemática da emergência de movimentos populistas de extrema-direita, é tão ou mais importante refletir sobre o rumo de países que, pertencendo à União Europeia, têm promovido políticas contrárias aos valores europeus. Refiro-me concretamente ao caso da Hungria e da Polónia, onde se têm verificado violações dos direitos das pessoas LGBTI+, bem como a adoção de medidas autocráticas que põem em risco o Estado de direito democrático nessas duas regiões. No capítulo da violação dos direitos das pessoas LGBTI+, mais diretamente pertinente para a presente reflexão, está em causa a aprovação de uma lei húngara que proíbe a divulgação de conteúdos relacionados com a homossexualidade ou a mudança de sexo a menores de idade, bem como a decisão polaca de criar “zonas isentas da ideologia LGBTI+”. Estas medidas entram em rota de colisão clara com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, como tal, não podem ser toleradas. A bem da integridade do projeto europeu, é necessário um diálogo político construtivo que ofereça soluções imediatas ou, na impossibilidade do mesmo, é imperativo que se avance na execução dos mecanismos previstos no Artigo 7.º do Tratado da União Europeia, concretizando as sanções previstas para os casos de violação dos valores da União.

Neste contexto, impõe-se uma questão de consentânea pertinência: como pode uma pessoa comum contribuir para a resolução de questões tão complexas e que, em grande medida, dependem da vontade política dos decisores? A melhor arma ao alcance de cada um de nós parece-me, justamente, a consciencialização dos decisores de que este assunto é uma prioridade absoluta para os cidadãos que representam. Quem tiver acompanhado de forma atenta as eleições legislativas de 2019, terá certamente notado que o assunto das alterações climáticas entrou na agenda política de todos os partidos, sem exceção, da esquerda à direita. Esta instância representou um caso de marcado sucesso na transmissão das prioridades dos cidadãos aos seus representantes, correspondendo precisamente ao que é desejável neste caso. Com efeito, constatamos que a construção de uma União Europeia mais inclusiva e da qual nos possamos continuar a orgulhar se encontra nas mãos de cada um de nós, na qualidade de cidadãos conscientes, e de todos nós, enquanto sociedade tolerante e multicultural. Este empreendimento é intrinsecamente premente pois, se a luta contra as alterações climáticas é o veículo para que tenhamos um planeta futuro onde viver, a luta pelos Direitos Humanos é o garante de que esse é um planeta onde vale a pena viver.

Autoria: Miguel Bernardino

2º Lugar | A história, e a solidão, repetem-se em ciclo?

“Sempre que te sentires sozinho ou triste, tenta ir às águas-furtadas num dia bonito e olhar lá para fora. Não para as casas e os telhados, mas para o céu. Enquanto puderes olhar sem medo para o céu, saberás que és puro de coração e encontrarás novamente a felicidade.” Palavras de Anne Frank1. Afinal, o que é olhar lá para fora? Através de uma janela? De uma fronteira? De um oceano? Olhar lá para fora permite ver para lá da nossa bolha. E o céu que nos cobre, é sempre o mesmo? Ou para uns, é feito de azuis, nuvens e chuviscos, e para outros de decisões políticas que, bem acima deles, se lhes sobrepõem?

Discutir a pertinência da União Europeia nos dias de hoje exige conhecimento histórico, político, humanitário, ético e um espírito crítico imparcial – é difícil, se não impossível, ser completamente imparcial nestes assuntos, e quem escreve é, naturalmente, uma pessoa que nasceu em determinadas circunstâncias, em muitos aspetos privilegiadas, dirigindo-se a um público-alvo heterogéneo, mas com esta particularidade em comum, minha e vossa, de pertencermos à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Situo-me no mundo, qual pontinho no mapa, e nesta tentativa de imparcialidade por aqui ando, percorrendo os corredores da faculdade, sem nunca ter posto os pés no parlamento, em terras de ação humanitária, ou saber na pele como é ter fome, fome a sério, deixando para trás a terra que me brotou, sem vislumbre de um amanhã sereno. Talvez mais do que qualquer um destes conhecimentos teóricos, discutir a pertinência da União Europeia exige que realmente me importe com o que está a acontecer: eu, que frequentemente, pelos mais diversos motivos, não acompanho suficientemente as notícias – “Neither love nor terror makes one blind: indifference makes one blind.” – James Baldwin2.

A União Europeia nasceu de um parto pouco pacífico, doloroso – mas possivelmente uma filha em muito planeada e desejada: no seio de um contexto pós-Segunda Guerra Mundial e de conflitos entre países vizinhos, no final dos anos 40, início dos anos 50, surgiu a sua semente, uma ideia inicial, de uma próspera união entre 6 países (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e os Países Baixos) que evitasse conflitos e potenciasse o seu crescimento, como um todo. Nos seus anos de juventude foi mudando de nome (originalmente designada como Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), acolhendo cada vez mais nações e, como é natural na adolescência e início da idade adulta, sonhando cada vez mais alto: Em 1957 foi assinado o Tratado de Roma, responsável pela criação de uma plataforma económica e social mais alargada, ao que se seguiram décadas de crescimento económico e alargamento desta união a outros países europeus, incluindo Portugal e Espanha, que integraram a organização em janeiro de 1986. Foi apenas em novembro de 1993, décadas depois do seu início, com o Tratado de Maastricht, que adquiriu o nome de União Europeia. Atualmente reúne 27 países (tomando em conta o controverso Brexit), unidos política e economicamente, num “mercado de movimento livre de bens, capitais, serviços e pessoas”. Quando ligam a televisão revêem-se neste breve retrato histórico?  

Permitam-me a liberdade para fazer o que a psiquiatria designaria de uma alteração do pensamento (será pensamento circunstanciado, ideofugitivo ou descarrilamento?): mas prometo que já lá chego. Na primavera deste ano li o aclamado livro Cem Anos de Solidão3, de Gabriel García Márquez, que já há muito muito tempo andava para ler. Livro viciante, rodopio de personagens que nos arrasta pelas páginas numa dança de gerações da família Buendía, por corredores húmidos e quentes de fetos e begónias, nas dores de parto, de amor, de loucura, em histórias de pessoas que tão rapidamente nascem como morrem, sem se aperceberem nem de um, nem de outro. Apesar de ter adorado esta viagem, como em qualquer bom livro, não saí incólume, e alguns aspetos fincaram em mim mais as suas garras do que outros. Algo que me incomodou particularmente foi a naturalidade com que o autor, qual Penélope da Odisseia, tecia tão rica e sumptuosamente a trama de uma qualquer personagem fantástica, daquelas tão vivas e coloridas que nos apelam ao coração, para logo, na brisa fresca da noite, a desfazer em morte ou desgraça. Como se nada fosse. Fazer e desfazer. 

A ideia, o propósito existencial da União Europeia, faz sentido, tem lógica. Porém, em pouco parece adequar-se às atuais necessidades: aqui incluem-se, por exemplo, as crises humanitárias com que é confrontada, exacerbadas pela pandemia, que gerou uma crise económica e de saúde pública. Desta última, surgiu a necessidade de um maior apoio aos diversos sistemas de saúde internacionais, e à pretensa equidade no acesso aos cuidados de saúde – afinal pouco colmatados em situações como a disparidade mundial no acesso à vacinação e, consequentemente, aos certificados de vacinação e seus benefícios. Porém, esta lógica que lhe subjaz não alimenta náufragos e tão pouco mitiga a ascensão da extrema-direita e os eventos que lhe estão associados, qual círculo vicioso que nos transporta de novo ao início, à guerra, à exclusão, aos letreiros nas portas dos cafés de “aqui não entram (…)”. Os movimentos de extrema-direita parecem florescer, em parte, do medo pelo desconhecido, e da adoração ao próprio umbigo. Porém, eu diria que uma União, a existir, no real sentido da palavra, além-mar das burocracias e legislações, seria aquela que nos permitiria “olhar lá para fora. Não para as casas e os telhados, mas para o céu” – e encontrar a felicidade ao saber que esse céu é feito de gente, cada qual com a sua maleita e discórdia e dor, procurando não mais que ser feliz. Na palavra União, caberiam a tolerância e a flexibilidade para cimentar os Direitos Humanos. Há, não obstante, inconsistência nas medidas implementadas pela União Europeia. Um certo travo a “fazer, em certas ocasiões, noutras tantas desfazer”.  Casamento instável de países, onde frequentemente se priorizam outros interesses que não os humanitários.

É uma surpresa quando estas teorias abstratas me entram porta adentro do consultório. 

Sizwe é pequeno, negro, de pulmões bem cheios de cada vez que lhe toco para o pesar ou medir e se decide a chorar de voz plena. Sizwe é, na verdade, significado de nação: nome de família ligado à política e história da África do Sul, que na altura do Apartheid reclamava a sua liberdade e a revolta com palavras como esta, nas ruas, na rádio, cravadas na alma do povo que se queria livre. Da liberdade de uma nação, se fez um nome comum. No centro de saúde onde estagiei, a população exige-me rápida e frequente adaptação ao utente:  Por entre a alegria inebriante típica de algumas nacionalidades que se repetem, a timidez da grávida que só fala inglês e desperta no entendimento de que posso ser tradutora (inglesa, irlandesa, indiana?), as histórias da mesquita dos muçulmanos, as aventuras e desventuras de africanos dos mais diversos pontos do continente, viajo, sempre a registar a parte médica no S clínico, a parte humana em mim, na esperança de ter memória suficiente para reter ambos. O certo é que nos dias em que estagio com o médico que ouve, ri e se entrega, dali saio menos embrenhada no “eu”, mais ampla e como que elevada pela perceção de realidades paralelas logo ali à minha beira. Nos outros, em que me calha o profissional indiferente, surdo, prescritor, entusiasta de respostas fáceis, acordo para a sala de espera cheia de gente perdida, incrédula e amassada, em movimentos e frases desconexas, tentando a todo o custo manter a cabeça à tona. Assim será sempre, julgo: depende de pessoas, dispostas a ouvir outras pessoas e a adaptarem-se aos novos constrangimentos. Estar vivo é estar em constante mutação, e a política, em certa medida, é um bicho que se quer vivo e flexível.

A união é fundamental – já o Hit da minha Noite da Medicina o diz destes loucos 6 anos: “Porque tu não vais fazê-los sozinho” – e afinal, a paz – física ou espiritual, de um aluno, cidadão, país ou mundial, em tanto nos faz depender uns dos outros. Por dizer, por saber, estão os próximos passos que a União Europeia irá tomar. Pergunto-me se terá a coragem e a ousadia que urge, de enfrentar este vírus que é a revolta e o descontentamento embrenhados nas ruas, ou, se como pensava Úrsula “o tempo não passava, mas andava às voltas”3 - A história, e a solidão, repetem-se em ciclo.

Autoria: Mariana Bettencourt

3º Lugar | Europa olha-te ao espelho

Era uma tarde banal de um dia comum de uma aula monótona de História num ano inespecificamente colocado entre 2011 e 2017 (creio que assim ainda apanho a larga maioria dos possíveis leitores deste texto). Nessa mesma tarde, que nenhum de nós recorda, mas que a realidade do nosso conhecimento atesta que existiu, foi-nos ensinado, com a voz indutora de hipnose (digna de ser reconhecida como tratamento para a insónia) que imagino que todos os professores de História têm, o nascimento da União Europeia (UE).

Uma história merecedora de ser conto para crianças, tal é a simplificação do processo que é lecionada. Um dia, meia dúzia de países “amigos” decidiram que era mesmo boa ideia que se pudesse deixar que o carvão e o aço passassem a ter um mercado comum. Umas décadas mais tarde, essa mesma meia dúzia fez mais “amigos” e decidiram que era mesmo giro sermos todos assim como um país, mas sem deixarmos de ser países individuais. Oh stôr, afinal não era preciso uma aula de hora e meia para explicar isto.

Mas se foi esse o peixe que nos venderam, não me parece que a realidade europeia seja assim tão simples. 

Numa curta pesquisa pelo site da União Europeia, visitando a secção de “Princípios, países, história”, encontramos uma página com os objetivos e valores da União Europeia. Achei que seria relevante olharmos em conjunto para algumas destas informações, só para ter a certeza que toda a gente vê a mesma coisa.

Relativamente aos objetivos, deixo aqui a minha proposta de adenda:

  • Onde se lê “favorecer o desenvolvimento sustentável, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, e numa economia de mercado altamente competitiva, com pleno emprego e progresso social” e “promover a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os países da UE” deverá acrescentar-se uma alínea a): a Crise Financeira da Grécia constitui uma exceção à aplicação deste objetivo;

  • Onde foi redigido “combater a exclusão social e a discriminação” deverá notar-se que este objetivo apenas se aplica a não refugiados;

  • Onde foi definido “estabelecer uma união económica e monetária cuja moeda é o euro” deverá deixar-se claro que um dos membros fundadores da União Europeia nunca usou o euro e já não faz parte da União, enquanto muitos outros membros se mantêm excluídos da chamada “Zona Euro”.

Temos ainda uma secção relativa a valores da União Europeia, que assinala a Dignidade do ser humano e os Direitos Humanos (vide campos de refugiados), a Liberdade, Democracia e Igualdade (vide Governo da Hungria) e o Estado de Direito (vide o Pedido da Comissão Europeia relativo a sanções financeiras à Polónia).

Mas de facto também é pedir demasiado que uma instituição de relevância política e económica global cumpra com os objetivos e valores que definiu para si mesma, não é?

Esta pequena viagem pela história recente (e sublinho, recente) da União Europeia relembra apenas um contexto mais cruelmente real, a inalterável hipocrisia do nome União Europeia.

Note-se que de Europeia tem tudo (à parte dos territórios ultramarinos de alguns dos seus membros). Mas de União, nas imortais palavras de Augusto Gil, “há pouco, há poucochinho”. 

A União Europeia é um daqueles team-buildings empresariais: estamos cá todos pelo dinheiro e não tanto para ser amigos, mas vamos fingir que nos damos com a Alemanha porque ela anda a comer o chefe, e pode ser que isso ainda nos ajude a ter um aumento de salário. Pelo menos a herdade que alugaram em Bruxelas para o jantar de Natal tem umas condições impecáveis.

Desde muito cedo que todos os países concordaram que, apesar de se querer criar uma identidade europeia, cada país deveria permanecer um ser independente. Nem por um segundo se quis pôr de parte antigas rivalidades, particularidades culturais ou patriotismos na busca de uma “cultura europeia”. Caída neste poço anárquico de discórdia, a “identidade europeia”, que tantos gostam de apregoar, rapidamente se desfaz num ideal bacoco, num caixão vazio que não merece funeral. 

Se no plano político global queremos ser a União Europeia, também queremos ser a França, a Alemanha, a Espanha, etc. Cada um deseja ter duas vozes, mantendo o conhecimento de que apenas a voz conjunta consegue ter o impacto desejado. E, pior que tudo, caímos numa esquizofrenia interna de vozes dissonantes que, como qualquer doente psiquiátrico, insistimos em fingir como coesão aos que nos rodeiam.

É sobre o peso das sucessivas hipocrisias, sobre o peso das intermináveis diferenças, sobre o peso das crises humanitárias, financeiras, políticas, sobre o peso dos ideais mal concretizados e sobre o peso das ideias ricocheteadas, que os pilares do Pártenon Europeu começam a rachar.

E nas rachas entranha-se a indiferença. Entranham-se os eternos envios de deputados europeus com os votos de poucos para tomar decisões que afetam tantos. Tão inconsequente na mente é esse sufrágio. Sufragamos a indiferença e ninguém vence senão quem assenta no seu poleiro.

Dessa indiferença, cresce a raiva. A raiva desmedida por uma instituição que mal conhecemos. A desconfiança e acusação de leis que afinal são nossas e não desses “europeus”. O apontar do dedo à Europa como causa de todos os nossos males, tantas vezes este dedo apontado na direção errada. E aqui se deixa crescer mais uma raiz do eucalipto populista.

Alternativamente, cresce a cobiça. O eterno português que, de palito na boca e cerveja na mão, proclama que “quero lá saber da Europa desde que o dinheirinho venha cá parar”.

Não surpreende, pois, que tantos de nós portugueses, que tanto devemos aos infinitos fundos europeus, nos mantenhamos enamorados desses “europeus”. Não foi ao acaso que Fernando Pessoa nos descreve como, da Europa, o rosto que fita: tantas vezes comemos da sua mão e tantas vezes tivemos mais olhos que barriga. Não espanta também que, nessa mesma descrição, a Inglaterra seja um dos cotovelos da Europa: tal foi a dor que sucumbiram ao rancor erradamente assestado.

Mas mais do que apontar o dedo àquilo que cada vez é mais difícil de disfarçar com a maquilhagem política, urge refletir sobre o nosso papel enquanto supostos cidadãos europeus no meio desta máquina institucional. Urge refletir sobre onde está o balanço certo entre a individualidade e autonomia nacional e a necessidade de enfrentar crises como uma legião romana, pautados pela união, pela tática, pela estabilidade. 

Poderemos continuar a chamar-nos uma União de Nações Europeias, e simultaneamente oscilar entre a completa aceitação de refugiados como vítimas das circunstâncias criadas pelo interesse de poucos, ou a total rejeição destes mesmos refugiados como aproveitadores de uma desculpa para virem tirar aquilo que vemos como nosso? Será aceitável uns fecharem as fronteiras enquanto outros nem uma porta conseguem construir, tal o dilúvio?

Poderemos continuar a declarar-nos uma União de Nações Europeias sem abordarmos os maiores temas do século XXI, como as alterações climáticas, as circunstâncias pandémicas, as crises económicas, numa perspetiva pautada pelo rigor e sincronismo?

Europa, olha-te ao espelho, e diz-me quem vês.

Autoria: Afonso Ribeiro



Menção Honrosa | O Reino Invisível

Segundo o filósofo Gilles Deleuze, a Europa entrou na era da sociedade de controlo. Esta superou a sua antecessora, a sociedade de disciplina, que se centrava em estruturas autoritárias (a prisão, a fábrica, a escola, o hospital psiquiátrico) baseadas em espaços fechados, dando origem a um novo princípio orientador das acções humanas: o controlo cibernético. Como funciona isto?

Darei um exemplo explícito: imaginem um mundo onde uma pessoa vai a uma entrevista de trabalho numa empresa; passadas algumas horas, a empresa compra aos data brokers os dados de saúde do candidato e descobre que nos meses anteriores ele comprou fármacos antidepressivos; por fim a empresa decide rejeitá-lo, pois existe possibilidade de o candidato voltar a desenvolver sintomas depressivos, o que seria prejudicial para o fluxo de trabalho da empresa. Parece ficção científica? Pois isto está muito próximo de (ou já mesmo a) acontecer: a exploração de dados de saúde já começou, e sabe-se que a aplicação de encontros Grindr partilhou informações sensíveis a empresas de dados e marketing, entre as quais se os utilizadores eram ou não HIV positivos. Carissa Véliz, do Institute for Ethics in Artificial Intelligence da Universidade de Oxford, alerta para o facto de os dados essenciais dos indivíduos lhes estarem a ser arrancados como forma de construir cada vez mais barreiras e discriminação.

Encaminhamo-nos para um período de servidão. Um novo tipo de escravatura em que o escravo não sabe que o é, porque ama os seus grilhões. Os direitos humanos de liberdade, privacidade e autodeterminação são violados sistematicamente sem explicitamente o serem, o que torna mais paradoxal a nossa sociedade globalizada. 

Em Portugal, adultos que sofreram doença oncológica durante a infância ou adolescência não conseguem obter seguros de saúde, seguros de vida ou crédito à habitação e, portanto, estão barrados do mercado de trabalho. Mais uma vez, os dados pessoais perseguem e cortam o caminho ao ser humano. A nossa sociedade precisa cada vez mais do “direito ao esquecimento.”

A manipulação não se limita apenas a servir os grandes grupos empresariais. Chegou o tempo em que o poder governamental está intrinsecamente conectado com as empresas de big data, uma aliança entre o aparelho estatal e os grandes detentores de capital económico. Os governos agora são capazes de utilizar as mesmas estratégias que as grandes empresas, para manipular os seus cidadãos. 

Em 2016, o Facebook permitiu que a empresa Cambridge Analytica extraísse do seu sistema enormes quantidades de informação privada de milhões de pessoas em vários países (estima-se que seja o inacreditável número de 87 milhões de pessoas), e que esta empresa passou os dados a outras entidades, com fins políticos. O jornal britânico The Guardian revelou como a Cambridge Analytica, a trabalhar para a campanha do senador norte-americano Ted Cruz, adquiriu dados de dezenas de milhões de utilizadores do Facebook (sem a autorização dos mesmos), através de testes de personalidade online desenvolvidos pelo psicólogo Aleksandr Kogan da Universidade de Cambridge – testes de personalidade que permitem construir perfis psicológicos em campanhas político-publicitárias destinadas a públicos-alvo. 

Carole Cadwalladr, uma das jornalistas britânicas que expôs as atividades da Cambridge Analytica, escreveu no Twitter: “The speed and scale of the damage Facebook is doing to democracies around the world is truly terrifying.”

Mas isto não ficou por aqui: a Cambridge Analytica esteve, alegadamente, envolvida com a campanha para o Reino Unido sair da União Europeia. Segundo um ex-funcionário, Christopher Wylie, “não teria havido Brexit sem Cambridge Analytica.” Contudo, segundo a Comissária para a Informação, Elizabeth Denham, os resultados oficiais da investigação não indicam envolvimento da Cambridge Analytica nas fases avançadas do processo do Brexit

Mais recentemente, em Setembro de 2020, saiu à luz um memorando da autoria de Sophie Zhang, ex-engenheira de dados do Facebook, que revelou que a empresa pouco ou nada fazia no sentido de impedir redes de influência de usarem a plataforma como meio de distorção de factos e de manipulação de eleitores, em vários países: “I know that I have blood on my hands by now.” Um dos piores exemplos é o caso do Azerbaijão, em que foram produzidos 2,1 milhões de comentários de perfis falsos a atacar os líderes da oposição e a louvar o atual presidente Ilham Aliyev bem como o seu partido, YAP. A equipa responsável praticamente ignorou a situação e, mesmo depois de ter ligado a campanha de propaganda com o partido YAP, deixou que as ações seguissem impunemente. Estas tácticas de manipulação também estão presentes em solo europeu: em Espanha, uma rede operou no sentido de deixar likes em publicações do Ministério da Saúde, embora os indícios não sejam claros sobre quem é que motivou esta ação. 

A lei de Regulação da Proteção Geral de Dados da União Europeia (General Data Protection Regulation – GDPR) faz parte de uma estrutura legal mais ampla que se encaixa no seguimento da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), documento que consagra o direito à privacidade. Esta lei, que entrou em efectividade em 2018, coloca em papel central a legalidade, a transparência, a responsabilidade dos analistas de dados perante a justiça, a minimização da colheita de dados e a confidencialidade, entre outros princípios (Artigo 5.1-2).

Mas o que pensam os políticos europeus do uso e abuso de dados pessoais? 

Existe um caso paradigmático, relatado pela BBC News em 2020: uma investigação de dois anos realizada pelo Information Commissioner’s Office (ICO) do Reino Unido descobriu que os dados de milhões de adultos nesse país tinham sido analisados e processados por uma empresa chamada Experian (da qual tanto o Partido Conservador quanto o Trabalhista adquiriram serviços…). Para o ICO bastou recomendar à empresa uma lista de alterações a fazer ao seu protocolo, de modo que a sua atividade se encaixasse com a GDPR e a Experian poderia continuar no mercado – isto só mostra o apelo sedutor que a análise de dados tem na classe política.

 Neste momento, a União Europeia está a preparar uma nova legislação que regule profundamente estes assuntos e que consiga combater o abuso dos direitos e vulnerabilidades dos cidadãos europeus, a Lei dos Serviços Digitais (Digital Services Act). Segundo a “Proposal for a REGULATION OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on a Single Market For Digital Services (Digital Services Act) and amending Directive 2000/31/EC”, apresentada ao Conselho Europeu em dezembro de 2020, está prevista (capítulo IV, secção 1) a existência de um Coordenador dos Serviços Digitais, a ser nomeado pelo governo de cada Estado-Membro, destinado a aplicar a legislação europeia nesta matéria.

Todavia, nesta proposta de lei existe um grande risco: se é um coordenador escolhido pelo governo a decidir o que é o “conteúdo ilegal” online, então o que decidiria o governo polaco acerca do discurso de ativismo dos direitos LGBTI+, ou o governo húngaro sobre informação acerca dos direitos humanos dos refugiados? Como se sabe, os governos polaco e húngaro são conhecidos pela sua hostilidade aos movimentos supracitados – muito provavelmente usariam o seu poder para ilegalizar conteúdo online relacionado com eles, criando a ameaça de um “Ministério da Verdade” orwelliano. E se os governos começarem a utilizar estes meios como um novo tipo de censura? Ou como ferramenta de discurso de ódio e xenofobia?

Se aceitarmos a possibilidade (como foi sugerida) de que a Cambridge Analytica, com base em dados do Facebook, foi um fator que determinou a saída britânica da União Europeia, então como não considerar que algo semelhante poderá acontecer a seguir, noutro país?

Os próximos anos serão, muito provavelmente, de fratura, em que os vários grupos de interesses dentro da União Europeia, ao longo do espectro político, irão utilizar cada vez mais os meios de manipulação digital para erodir as estruturas democráticas e fomentar desunião. E é sabendo desta ameaça que teremos de ir buscar armas para lutar.

Autoria: João Almeida

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

2º Lugar:

  1. Anne Frank (1947) – O Diário de Anne Frank

  2. James Baldwin (1974) – Se esta Rua Falasse

  3. Gabriel García Márquez (1967) – Cem Anos de Solidão

Menção Honrosa:

  1. Brusseau J. Deleuze’s Postscript on the Societies of Control: Updated for Big Data and Predictive Analytics. Theoria 67(164):1-25 (setembro, 2020). DOI:10.3167/th.2020.6716401

  2. “São empresas que tentam ter um ficheiro de cada utilizador de Internet, este ficheiro pode conter coisas como o que procuras online, o que compras, os teus registos médicos, a tua educação, o teu poder de compra. Depois vendem estes dados a quem paga mais: podem ser seguradoras, bancos, empresas de marketing ou governos.” In: Marques V. Entrevista a Carissa Véliz – “É muito fácil saber com quem dormes através dos teus dados”. Sábado N.º 878, Semanal – 25 de fevereiro a 3 de março de 2021 (Lisboa); pp. 24-26.

  3. Ibidem, e: Véliz C. Privacy and digital ethics after the pandemic. Nat Electron 4, 10–11 (2021). https://doi.org/10.1038/s41928-020-00536-y

  4. https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/direito-ao-esquecimento-porque-sobreviver-a-um-cancro-em-crianca-nao-e-suficiente

  5. https://newint.org/features/2019/02/11/interview-Slavoj-Zizek

  6. https://www.bbc.com/news/technology-43649018

  7. https://www.bbc.com/news/technology-43649018

  8. https://www.theguardian.com/uk-news/2018/may/06/cambridge-analytica-kept-facebook-data-models-through-us-election

  9. https://www.bbc.com/news/technology-54161344

  10. https://www.politico.eu/article/cambridge-analytica-leave-eu-ukip-brexit-facebook/

  11. https://observador.pt/2018/03/26/o-brexit-nunca-teria-acontecido-sem-a-cambridge-analytica-revela-ex-funcionario/

  12. https://www.politico.eu/article/no-evidence-that-cambridge-analytica-misused-data-to-influence-brexit-report/

  13. https://www.abc.net.au/news/2021-04-29/facebook-whistleblower-sophie-zhang-government-manipulation/100103408

  14. https://www.theguardian.com/technology/2021/apr/12/facebook-fake-engagement-whistleblower-sophie-zhang

  15. Ibidem.

  16. https://elpais.com/tecnologia/2020-04-20/facebook-investiga-cientos-de-perfiles-falsos-que-daban-like-a-mensajes-del-ministerio-de-sanidad.html?rel=listaapoyo

  17.  https://gdpr.eu/what-is-gdpr/

  18. https://www.bbc.com/news/technology-54915779

  19. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=COM%3A2020%3A825%3AFI

  20. Aqui parafraseio uma passagem do artigo “European plans to regulate internet will have major impacts on civic space at home and abroad”, de Iverna McGowan, disponível em: https://www.openglobalrights.org/european-plans-to-regulate-internet-will-have-major-impacts-on-civic-space-at-home-and-abroad/?lang=English

POETAS DE ESTETO NA MÃO | O Falhanço da Vitória

O que é que fazemos

Quando conseguimos o que queremos

Lutamos e vencemos

Alcançamos os objectivos

E no final o que sentimos

São os dias totalmente vazios?


Vivemos em esforço 

Treinados para a luta

Porque a vida é dura e bruta

E não devemos esperar pelo reforço

Pelo conforto

Pelo consolo

Pelo momento que precisávamos

Pobre momento em que recuperávamos

Roubado, nem lhe tocamos

Nem o sentimos, às vezes nem o imaginamos


Porque o tempo não para

Porque se estamos mal, tudo passa

Porque parar é morrer

Porque há tanto a fazer, tudo a acontecer

Olhar para trás é falhar

Pestanejar é errar

Questionar é fatal 

Desespero é banal

Fazemos das tripas coração

Porque nunca nos foi dada outra opção


E quando os seus engenhos bem desenhados

Autómatos regrados

Perfeitamente idealizados

Da carne esgotados

E do sangue drenados

Quando não nos sobra senão o propósito, a demanda, a missão

Fracos demais para oposição

Com a consciência ardida e a alma falida

Agora sim, missão cumprida


E o que vem depois?

Depois da escalada que nos maltrata

Mais sedenta a cada dia

Chegamos finalmente ao topo

Onde está a alegria?



Vivemos para a subida mas sem pensar na descida

Subimos às nuvens e agora falta-nos o chão

Há um sufoco que aperta com a chegada da noção

Que a caminhada que nos matava era também a que nos sustentava

E o que sobra, o que nos resta?

É o eco do triunfo no oco do ser

É a solidão

A inércia

É o desamparo

O vazio

nada

Agora o esforço é existir

Mas para isso ninguém nos prepara

Autor: Pedro Sousa

Edição de Imagem: Catarina Simões

MedScene | The French Dispatch

[1]

Ir ver o “The French Dispatch” ao cinema foi uma experiência extremamente catártica! Foi o primeiro filme que vi num grande cinema desde o início da pandemia (não, não estou a contar com as sessões de cinema ao ar livre com uma lotação de doze pessoas) e, para acrescentar ao entusiasmo, já era um filme pelo qual ansiava desde o ano passado. As saudades que tinha do mundinho de bonecas “andersoniano” tão meticulosamente construído e dos diálogos demasiado pormenorizados para acompanhar fizeram com que as minhas expetativas para o filme estivessem elevadas.

Felizmente, o filme correspondeu às expetativas. Desde o início, acompanhamos quatro histórias diferentes que correspondem a quatro segmentos do jornal “The French Dispatch” – viagens, cultura, política e comida – que depois são compiladas juntamente com o obituário do editor do jornal para assinalar a última edição do periódico. Cada uma destas histórias é escrita por um jornalista diferente, tendo um elenco diferente e uma atmosfera distinta, mas mantendo sempre o mesmo humor caricato nas circunstâncias e nos detalhes dos cenários (ADOREI as várias referências visuais ao álbum de covers de músicas pop francesas que o Jarvis Cocker lançou para acompanhar o filme).

O “The French Dispatch” é cativante do início ao fim e constitui, sem dúvida, um dos melhores filmes do Wes Anderson.


[2]

Há certos momentos na vida que apenas podem ser atribuídos ao destino: ter tido a possibilidade de ver a estreia do “The French Dispatch” grátis na Áustria enquanto em Erasmus foi uma delas. No início tinha poucos incentivos para ir ao cinema: os filmes são quase todos dobrados em alemão, os preços mais caros e o bom tempo usado para atividades ao ar livre. 

Tudo isso mudou com o Leo Kino, um cinema focado em filmes independentes, legendados e de várias nacionalidades. Um dia fatídico em outubro, anunciaram a iniciativa da “Entdeckungswochen” (Semanas de Descoberta) entre os dias 18/10 - 26/11, todos os filmes no seu programa iriam ter entrada livre para menores de 25 anos. Sendo admiradora de Wes Anderson de longa data, naturalmente organizei um grupo de 20 amigos para a estreia do seu filme mais recente. Foi um filme mágico, com os elementos característicos das histórias nostálgicas e “bittersweet” contidas em cada secção do jornal epónimo, um elenco incrível dedicado às personagens ecléticas e música linda no piano pelo Alexandre Desplat. 

O elemento principal é o seu estilo visual expressivo que, apesar de experimentar com técnicas novas neste filme, continua dominado pela simetria, combinações distintas de cores e o enquadramento e movimento da câmera em duas dimensões, como o folhear das páginas num livro de contos.



Autoras: Inês Borges [1] e Zita Matias [2]

Edição de Imagem: Catarina Simões

Nutri2Go | Feed & Teach Your Knowledge

[1] O peso da obesidade - uma mesa redonda multidisciplinar

A obesidade é um importante problema de saúde pública, com uma prevalência que continua a aumentar e a afetar mais de 2 mil milhões de pessoas, o que corresponde a 30% da população mundial. Portugal acompanha o paradigma mundial: segundo os dados do Inquérito Nacional de Saúde, em 2019, 53,6% da população portuguesa apresentava excesso de peso.

Mas será a obesidade uma doença ou um fator de risco? Uma pessoa pode ter excesso de peso e ser saudável? Quais serão os efeitos psicológicos? Qual é a melhor abordagem para a perda de peso?

O diagnóstico da obesidade assenta essencialmente no cálculo do IMC. Mas não será este parâmetro ligeiramente redutor? Temos de refletir se, efetivamente, não estamos a contribuir para aumentar o estigma do peso – também considerado um problema de saúde pública - e começar a resolver a discriminação da obesidade nos meios sociais, reconhecendo as suas consequências psicológicas.

Neste sentido, consideramos pertinente criar uma discussão entre três profissionais de saúde, relativamente a estas três áreas de atuação: obesidade como um problema de saúde pública, o seu tratamento individualizado e personalizado e os efeitos que tem na saúde mental a curto e a longo prazo.


[2] Da patologia ao prato - nutrição clínica

Muito provavelmente já ouviste uma variação da seguinte frase: “Não comas isso, faz mal!”. De facto, hoje, é difícil distinguir entre aquilo que é prejudicial para a saúde daquilo que faz bem, dada a multidimensionalidade nutricional dos alimentos: a fruta tem muito açúcar, mas também é uma boa fonte de fibra e vitaminas; a carne vermelha é uma boa fonte de proteína, mas está associada a um maior risco de cancro colorretal; o óleo de coco é uma melhor alternativa ao azeite por ser mais “natural,” mas tem mais gordura saturada. 

Estes constituem apenas uma fração do excesso de informação que é muitas vezes responsável por uma confusão generalizada, cujo principal resultado é a demonização dos alimentos, pouco fundamentada e com grande impacto na nossa relação com a comida. 

De facto, a consciência daquilo que consumimos no quotidiano é importante para a manutenção da saúde. Porém, é necessário alertar contra a restrição que pode advir desta, podendo, por sua vez, constituir a raiz de diversos distúrbios do comportamento alimentar. 

Atualmente, a incidência destes transtornos mentais está num trajeto crescente, especialmente devido à pedestalização e idealização de um estilo de vida “saudável” e à estigmatização do excesso de peso numa sociedade cada vez mais focada no físico. 

Desta forma, consideramos essencial, não só desmistificar alguns destes conceitos, abordando como a prática contínua de certos hábitos alimentares poderá estar na base de algumas patologias, mas também acautelar contra a sua propagação na comunidade e potencial impacto a nível da saúde física e mental.


[3] (In)Gestão nutricional - política e gestão alimentar

O Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) é um dos programas prioritários do Plano Nacional de Saúde, cujo objetivo é reforçar a importância das políticas alimentares e nutricionais. 

O PNPAS declarou como metas para 2020 controlar a prevalência de excesso de peso e obesidade na população infantil e escolar, reduzir a quantidade média de sal e açúcar presente nos principais alimentos, reduzir a quantidade de ácidos gordos trans no total das gorduras disponibilizadas, promover o aumento do consumo de fruta e ainda dar a conhecer, ao maior número de pessoas, os princípios da dieta mediterrânea.

Para que o país consiga alcançar estes objetivos, é necessária uma cooperação política superior e uniformizada, entre o governo e os agentes do setor privado, de maneira a criar uma mudança com o maior impacto possível. Como exemplo, em 2017, foi implementado o imposto especial sobre bebidas açucaradas, com o objetivo de reduzir a quantidade média de açúcar nestes alimentos. De facto, esta medida teve prospeções bastante positivas, onde ocorreu, efetivamente, uma diminuição de aproximadamente 0,7g de açúcar por 100g de bebida.

Para além da taxação de bebidas açucaradas, existem outras leis que contribuem para alcançar as metas estabelecidas pelo PNPAS: em 2019, foram induzidas restrições à publicidade dirigida a menores de 16 anos de produtos alimentares e bebidas que contivessem elevado valor energético, teor de sal, açúcar, ácidos gordos saturados e ácidos gordos trans.

As questões sobre as quais desafiamos a refletir são quais serão as dificuldades para a criação de políticas nutricionais? Qual o seu acolhimento pela sociedade portuguesa? Serão estas iniciativas uma prioridade para o governo português? Qual será o próximo passo? 


[4] Nutrir o agora - nutrição na atualidade

No contexto das circunstâncias extraordinárias criadas pela pandemia de COVID-19, verificou-se que até um décimo da população mundial sofria de malnutrição em 2020. Considerando os avanços a nível da industrialização alimentar e da produção em massa de alimentos, este facto torna-se ainda mais assustador, sendo elucidativo da disparidade no acesso aos alimentos, predominantemente verificada nos países em desenvolvimento. 

Pelo contrário, evidencia-se uma maior disponibilidade de aporte nutricional nos países desenvolvidos que, paradoxalmente, não se traduz necessariamente numa nutrição mais adequada, nem no seu acesso equitativo ao nível dos diferentes estratos socioeconómicos. Para esta iniquidade de acesso aos alimentos contribui também o desperdício alimentar, com efeitos significativos na progressão das alterações climáticas.

Assim sendo, é pertinente abordar o papel do nutricionista no enfrentamento destes desafios, cujas repercussões não se limitam à saúde global, mas também ao ambiente. Para além de intervenções ao nível da política alimentar, uma ferramenta útil, embora contraditória, que o mesmo tem ao seu dispor é a tecnologia. Hoje, a influência desta no âmbito dos comportamentos alimentares e nos níveis de atividade física é inquestionável. Ao disponibilizar inúmeros métodos de quantificação do aporte nutricional e energético, para além do exercício físico, permite uma melhor gestão destes e uma maior autoconscientização dos hábitos e do seu impacto, não só na saúde mas também no ambiente, por exemplo através do cálculo da pegada de carbono. Assim, apesar desta se associar frequentemente ao sedentarismo, a sua mobilização pelo nutricionista como arma no combate da malnutrição e obesidade é vital, permitindo o alcance de hábitos promotores de saúde sustentáveis. 


Autoria: Comissão Organizadora do Nutri2Go

Edição de Imagem: Catarina Simões e Felipe Bezerra

Referências Bibliográficas:

[1] Caballero, B. (2019). Humans against Obesity: Who Will Win? Advances in Nutrition, 10(suppl_1), S4–S9. https://doi.org/10.1093/advances/nmy055

[1] Pont, S. J., Puhl, R., Cook, S. R., & Slusser, W. (2017). Stigma Experienced by Children and Adolescents With Obesity. Pediatrics, 140(6), e20173034. https://doi.org/10.1542/peds.2017-3034 

[1, 3] Direção Geral de Saúde. (2020, October). PROGRAMA NACIONAL PARA a PROMOÇÃO DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL 2020. Maria João Gregório, Sofia Mendes de Sousa, Diana Teixeira. https://alimentacaosaudavel.dgs.pt/activeapp2020/wp-content/uploads/2020/11/Relato%CC%81rio-PNPAS-2020.pdf 

[4] UN report: Pandemic year marked by spike in world hunger. (2021, July 12). World Health Organization. https://www.who.int/news/item/12-07-2021-un-report-pandemic-year-marked-by-spike-in-world-hunger 

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Um Caso Acidental

A verdadeira beleza das coisas

Está nos meios e não nos fins.


Começar pelo final é de principiante,

Agora sei,

Mas assim percebi que esta variante

É de quem a sorte os escolher

De ter dois princípios

E, à vista, nenhum fim.


A calma aconselhada é prudente,

Mas eu nunca fui.

A minha liberdade é intransigente

E eu libertei-me arbitrando

Que da maneira que corre sempre mal,

Para nós dois, num caso acidental,

Será a forma de chegar ao mesmo sítio 

Que a outros a calma levou.


Esta minha impaciência,

Que foi nossa, na verdade,

Fez-nos andar em marcha contrária,

Ingénuos à circularidade de uma vida.

Assim, circulámos todos os passos 

Com uma ordem arbitrária,

Prolongando por demais os espaços

Entre qualquer princípio,

E qualquer fim.


Autora: Filipa Dias

Edição de Imagem: Catarina Simões

ÂNSIA CRÓNICA | Mulheres Mascaradas

Desde criança que queria ser menina. Queria ser afável, prestável, simpática, alegre, educada e bonita. Queria ser indistinguível das minhas colegas. Mas não consegui. Não tenho senso nem sensibilidade, simpatia ou sociabilidade. Não tenho gostos, interesses ou maneirismos femininos. Não conseguia relacionar-me nem com raparigas nem com rapazes.

Criei uma máscara com base no que pensava que devia ser, enquanto rapariga e mulher, tão antiga que já não a consigo tirar. Mas esta máscara é frágil e defeituosa, e apesar de esconder quem sou, não mostra quem devia ser.

Durante anos acreditei que havia algo fundamentalmente errado comigo, que tinha nascido mal. Não era só um aspeto da minha personalidade que era diferente, era um grupo de atipias que não podia ser ignorado. Era disfuncional, mas não o suficiente para ser considerado doença. É um limbo solitário, que é difícil de explicar e compreender.

Através da internet procurei respostas, soluções, outras pessoas que se sentissem como eu. Nunca encontrei uma explicação para a maneira como sou, mas há pouco tempo encontrei mulheres como eu. Mulheres diferentes, de diversas naturalidades, crenças e classes, cujo único denominador é sentirem que há algo intrinsecamente errado com elas próprias.

O mais importante é que há aceitação sem concordância. Aceitamos que somos diferentes entre nós, porque sabemos o que é ser diferente, o que é ser o outro. Não nos temos de mascarar e não temos medo de ser excluídas por sermos diferentes, ao contrário do que acontece na vida real.

Entre todas, há múltiplas respostas, múltiplas teorias, múltiplas soluções e remendos. Algumas lidam com terapia, outras com medicação, outras com transição. Outras têm famílias e amigos que as apoiam, e conseguem pertencer com a sua diferença. Outras simplesmente continuam, com o alívio de que se estão sós, pelo menos não são únicas.

Autor: Anónimo

Edição de Imagem: Catarina Simões

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Tenho Sede de Ti

Tenho sede de ti,

Sinto na boca a ausência tua.

Doí-me nos braços a leveza

De serem braços sem ti.

Caiu o Sol, reina a Lua.

E estar só é última certeza…


Sede mor de mar,

Tenho sede no corpo todo,

Todo o corpo te sente no não te sentir.

Sede de angústia e choro,

Sono de um sonho a fugir.


Vejo-te morto em vãos desejos,

E fraquejam-me os joelhos sedentos.

Não te tenho vivo. Quero-te morto!

E que entrasses morto pelos meus braços dentro.


Tenho seco todo o sal do rosto

Vazio de luz como de esperança.

Sentado no deserto, olho o chão,

Esperando que, como um rio,

Apagues as pegadas da partida tua.

E venhas, mosto, em dionisíacas danças

Embebedar-me de ti, esquecida, nua.


Com sede nos dedos que te tocaram,

Sede de sede é o meu corpo,

Cada órgão te chora e te chama.

Anatomia macabra de um sopro,

Profanada de dor e de lama.


Tristes, todas as minhas horas

Miseráveis ossos todos os meus.

Fecharam-se todas as portas, é hora!

Troco agora todos os céus

Pelo inferno de uns olhos. Teus.


Autora: Ana Fagundes

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

Feira Solidária | A Crise no Lago Chade

1

A crise climática no lago Chade e a devastação dos campos agrícolas circundantes tiveram como resultado a diminuição das já escassas fontes de rendimento da população. 

As mulheres e raparigas, enquanto principais responsáveis em cada família pela procura de recursos, encontram-se em situação de vulnerabilidade acrescida. Para além disso, tem havido uma exacerbação da violência física e sexual contra elas - por parte dos grupos insurgentes e das próprias forças armadas estatais, mas também pelos membros das suas comunidades ou famílias. As raparigas que “sobrevivem” a ataques sexuais são estigmatizadas e obrigadas a casar com os abusadores; por outro lado, as relações sexuais forçadas são a unica forma de conseguirem ter dinheiro para a comida, a roupa e a escola, uma vez que o seu curto percurso escolar não lhes permite arranjar um trabalho. As raparigas são impedidas de aprender: em vez de prosseguirem para o ensino secundário, são obrigadas a realizar tarefas domésticas ou a casar, alternativa encontrada pelos pais que não têm forma de as sustentar. De facto, é muito comum as raparigas casarem-se aos 14-15 anos, altura em que acabam a educação primária - tendência que tem vindo a aumentar desde o início da crise. As raparigas iniciam a vida sexual precocemente, e não possuem informaçao sobre o sexo e o ciclo menstrual, engravidando com muita facilidade. A falta de conhecimentos sobre saúde sexual e reprodutiva, aliada à escassez de cuidados de saúde de qualidade, é uma ameaça para a sua vida: no Lago Chade morrem 773,4 mães por cada 100.000 nados vivos, uma das taxas de mortalidade materna mais altas do mundo.

A situação provocada pela pandemia facilitou o abuso de poder pelas autoridades, que através dos “confinamentos” permitiram a diminuição da atividade de organizações humanitárias. Para além disso, verificou-se a redução das atividades educativas e o fecho de escolas e , bem como de espaços seguros para as crianças, diminuição do acesso a água e saneamento, diminuição do rendimento das famílias. As raparigas viram, ainda, o aumento da necessidade de prestar cuidados aos familiares. 

As raparigas estão cientes da sua situação de pobreza e vulnerabilidade, mas reside nelas a esperança de melhorar as condições de vida das suas famílias e comunidades. Elas estão cientes da importância do prosseguimento de estudos e de terem um trabalho adequado, e reivindicam ser ouvidas nos processos de tomada de decisão, terem espaços onde se possam sentir seguras. 

Autora: Rita Bernardo

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

2

Se fores

Nada temas

Vai até ao fim

Irás conhecer a Vitória e a Derrota

estas 2 impostoras

que habitam

a moralidade da literalidade

Um dia, eu irei à escola

todos os dias

Saberei o que é o pequeno almoço

e o lanche da manhã

Saberei o que é comer

com uma faca e um garfo

Saberei o que é fazer jejum

Diferenciarei a Roda dos alimentos

no meio do trânsito

E perceberei que ir ao médico

pode ser apenas rotina


Um dia, serei rico

rico por dentro,

e por fora


Hoje,

hoje não é o dia

Mas está quase

Espera

Faz silêncio

Já o ouço,

Caminha a passos largos

Até já...

Um dia terei uma casa

onde poderei ver

as estrelas no céu

Como um daqueles canais

no pacote da tv

Um dia, saberei soletrar

a palavra escolha

quando me sentar à mesa

Um dia, conhecerei

a cor incolor

o cheiro inodoro

o sabor insípido

da água que bebo

Um dia, sentirei falta da ignorância

do que é conhecer

nada mais que o hoje

que o agora

Um dia, terei voz

para saber negar

para saber entoar

para simplesmente aprender

a voar


Porque se tu sabes sonhar

e não ser escravo

dos teus sonhos

Porque se tu sabes ouvir

a verdade dita

na penumbra do ruído

Porque se tu sabes pensar

no meio da boçalidade

do aparência

Serás mais

Serás imparável!

Autor: António Lopez

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

Bibliografia Texto 1:

1 - https://s3.us-west-2.amazonaws.com/secure.notion-static.com/df69140a-7447-41ec-9439-d55d0e01021b/girlsinemergencies-lakechad-summary_oct2018.pdf?X-Amz-Algorithm=AWS4-HMAC-SHA256&X-Amz-Credential=AKIAT73L2G45O3KS52Y5%2F20210509%2Fus-west-2%2Fs3%2Faws4_request&X-Amz-Date=20210509T201850Z&X-Amz-Expires=86400&X-Amz-Signature=16bdc402c18a3948c07ea6b030fbd5662f4e2639b7bfa990b3718e26863863de&X-Amz-SignedHeaders=host&response-content-disposition=filename%20%3D%22girlsinemergencies-lakechad-summary_oct2018.pdf%22

2 - https://reliefweb.int/report/cameroon/impact-covid-19-girls-lake-chad 

3- https://www.voanews.com/africa/survey-no-safe-haven-girls-crisis-hit-lake-chad-region

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Trevo de Quatro Folhas


Se o trevo de três folhas nasce 

Em qualquer hora e qualquer lugar,

Hoje planto um trevo de quatro folhas

Que sou eu que decido quando quero mudar.


Amanhã regarei com o meu próprio suor

Este rebento da terra que traça o meu destino.

Mais ninguém o poderá fazer

Que o sonho é meu, e é clandestino.


A sorte somos nós que a fazemos,

Raramente é ela que nos aparece.

Por isso, hoje planto este trevo

E no futuro tantos mais quantos me apetece.


Trevo de quatro folhas,

Foi hoje que decidi que não és especial.

Foi nesta data que decidi

Que vais ser um de muitos no meu quintal.

Autora: Filipa Dias

Edição de Imagem: Guilherme Luís

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Desabafo de uma Feminista

Queria batalhar 

E acabei vencida

Tão iludida!

Nada desejava mais que celebrar

O meu, o teu, o nosso dia!

E acabei a desejar o amanhã triste,

O fim deste dia que já não sentia meu.


Em vez de lutar, sair à rua,

Chorei em casa, confinada.

Em companhia,

Mas no fundo tão sozinha.


Acabei por me esquecer do verdadeiro significado do dia.

A esperança de um dia acordar e ser diferente.

O conhecimento de que não estou sozinha.

O pensamento e memória de todas as mulheres

Que como eu se sentem sem voz!

Silenciadas, mas nunca caladas!

De todas as mulheres que lutaram, que lutam e que lutarão.

E que o único crime, hoje, é desistir.

Acordei feliz, corajosa 

Com desejo de lutar pela história,

Deixar as minhas antecedentes orgulhosas,

Com a urgência de fazer algo,

Contribuir,

Deixar o mundo a sorrir...


O meu desejo ficou por aí:

Um sonho.

Mais um dia em que nada mudou.

Mais um dia em que à espera de entendimento

Encontrei nada que não conflito…

Emburrecimento do espírito.


Saboreei a chapada dos ignorantes, 

Dos mal intencionados,

Dos(as) conformados(as)...

E, por momentos, também eu desisti.


Dececionada fiquei.

Isolada.

Quebrada a bolha de expectativas,

Do entendimento do mundo.

(Que no fundo pensei ser 

talvez absoluto?)

Autora: Sofia Bártolo

Edição de Imagem: Guilherme Luís

ÂNSIA CRÓNICA | Há Vultos Debaixo da Escada

Há vultos debaixo da escada, da escada da minha inconsciência.

Há sombras de memórias que nunca foram, cicatrizes de dores que só pensei, que gritam como gatos, os habitantes de sempre de debaixo das escadas. Das escadas das cidades de outros, cheias de casas com outros, os degraus que nunca calco, degraus de outras escadas, escadas duras, concretas, reais. Cinzentas, como que numa mostra redundante da sua realidade.

Mas esta escada de nada de real só liga o andar do sonho ao do pesadelo. Os seus degraus são feitos da matéria da mente, da que se enrola pelos fundos escuros, que se deixa ficar à margem das vozes dos sensos, bons ou maus, que não se mexe a menos que lhe mexa. E nunca lhe mexo. É cinzenta, mas perde-se no escuro dos arredores. E os ares em redores são de sombra, não de ruas iluminadas, não de passeios calçados, terra corrida por novelos de pés, estradas resmagadas por enredos de rodas. É cinzenta só como o resto da dormência mental. É cinzenta, é. Mas não é real.

Se fechar os olhos por muito tempo, e eles rodarem para trás, de cansaço e desistência, vejo a escada no lado oposto do crânio, parada, à espera de um holofote que a ilumine na sua metáfora. Mas os sítios que não estão nos mapas não precisam de sol, nem de lua, são estrelas de um filme sem graça que se desgraça num cinema de esquina que tresanda a abandono e a passado. Estas são as ruas da nudez, da palidez doente, da morte que ainda respira. E ruas destas não brilham. E ruas destas atingem-nas sangue e balas, recheadas de desprezo e nojo. Mas não fotões.

O passado passa por baixo das minhas escadas, lança mãos decadentes para as ilhargas sós. E quando os vultos debaixo da escada têm fome, os vultos engolem memórias. Depois, os vultos cospem breu e gritam sombras ensurdecedoras. E o som é como um tiro, e abro finalmente os olhos, alerta. Desperta! Se o sono é de medo, desperta!

Alerta, mantenho-me lerda para a lenta morte a que voto a escada, a minha escada. Caíram pedras, o corrimão cedeu. Os abutres voam acima, os vultos escondem-se debaixo. E continuo a sorrir, ignorante, sabedora de que é a única solução.

Que não há procura que volte a transformar o soluço em mais que ar rápido goela abaixo. Seco, poluído, só ar.

Que não há antídoto para que o abraço volte a saber a mais que aperto que vem e vai, deixando uma nódoa negra, de recordação suja. Fraco, frio, só aperto.

Que não há poção, feitiço ou reza que traga beijo ao calor e pressão de outros lábios no frio defunto dos meus. Suado, profano, comprado.

Debaixo da minha escada, vivem vultos.

Debaixo da minha escada, encontram morada interna os infernos de todas as falhas e faltas.

Debaixo da minha escada, está todo o lixo que varri e afoguei. Os átomos que um dia foram animados decaem, as pessoas despedem-se, viajam para expedições no subsolo e não voltam mais. As flores que lhes damos trazem só abelhas. E o lixo que vou sendo traz só vermes.

Ver-me verme, enfim, quando eles, com as bocas viscosas e sedentas, levarem todo o silêncio senil. Ei-la, esta, a vida eterna!

O reino dos réus! 

Quando vieres ressuscitar os vivos e os mortos, eu ficarei com os que não sabem que não sabem decidir!

Autor: Ana Fagundes - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano

ÂNSIA CRÓNICA | No Subúrbio da Esperança

Pergunto-me qual será a sensação de ter a Terra a tremer e a única estabilidade que nos mantém fixos a um solo trémulo ser a esperança.

Pergunto-me qual será a sensação de toda uma vida construída ser abanada por um fado atroz.

Pergunto-me como alguém se reconstrói quando perde tudo mas tem a esperança que a Terra não voltará a tremer.

Pergunto-me tudo isso enquanto o Mundo treme... de medo, de incógnitas altamente destrutivas. 

Sinto o Mundo colapsado na revolta e no desânimo. 

Sinto o Mundo exausto e sem qualquer esperança dum futuro com liberdade.

Mas seremos realmente livres? 

Vivemos encurralados num Mundo de preconceitos, de segregações. 

Vivemos num constante subúrbio, em que a Vida está na cidade mas nunca temos coragem de apanhar o comboio para a vivermos realmente então vivemos naquilo que ela nos vai restando. 

E quando tudo acaba, quando a Vida acaba, ficamos como? Ficamos assim.

Autora: Carolina Malta Gomes

Fotografia: Beatriz Francisco

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

POETAS DE ESTETO NA MÃO | As Fúrias


Que fúria sinto ao ver o sol se ascendendo perante o céu; lágrimas desbotadas no calor do firmamento! Nos intróitos da memória, encontro um lugar em que o sol me foi triste, mas não tanto. Reencontro nessa terna infância os prazeres de ser-me humano.

Mas a fúria... Oh esta raiva...

Vísceras entornando sobre o solo e nelas vejo o tom vermelho com que pinto a minha ira. Choco versos do topo dos pulmões e atinjo-os na garganta p'ra que morram sem falar. 

Algo nessas ideações me sugere a violência do nascimento, os gritos da mãe no parto. Seus órgãos expandidos ao limite do incompreensível; e como poderia o homem entender essa loucura de ser mãe, de ser um criador de vidas na Literatura da Vida, nomeando seus homúnculos como Adão embebecido, e a espairecer nas nuvens tal a Virgem do Sem-Pecado?

Como poderiam os vórtices do universo

entender o próprio cosmos...

Rege nos sonhos um jazigo de inquietude; e se me levanto de manhã, é para fazer alguma coisa, que a vida jaz finita. As insónias que me atormentam... os prazeres de um desbocado...

que só vive

o seu calor.


Autor: Tiago de Sousa

Ilustração: Inês Hermenegildo

Edição de Imagem: Guilherme Luís

CONTRACORRENTE | Os Extremos Tocam-se?

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SIM

 

Na política, um partido encontra-se algures no eixo esquerda-direita. De modo geral, a direita política defende autoridade, hierarquia, ordem, dever, tradição, religião e nacionalismo; baseia-se no passado e exige responsabilidade individual. Do outro lado, a esquerda luta por liberdade, equidade, fraternidade, progresso e internacionalismo; foca-se no futuro e defende a liberdade individual.

Após os crimes hediondos contra a humanidade na 2ª Grande Guerra, os regimes de extrema-direita são apontados como o pior exemplo da espécie humana. Além disso, os partidos de extrema-direita que sobreviveram ou nasceram desde então são comuns e bastante vocais, disseminando uma retórica baseada em xenofobia.

Os partidos de extrema-esquerda, por sua vez, são mais aceites pela população em geral no mundo ocidental, porque a sua retórica defende os direitos do povo, os 99%, que são esquecidos pela classe governativa.

Porém, em ciência política, há uma teoria que defende que os 2 extremos esquerda-direita estão mais próximos um do outro do que estão do centro. Assim, o espectro político não é um eixo, mas sim uma ferradura. 

Os extremos, pela sua própria natureza, são aceites apenas por uma minoria da população e a sua implementação implica obrigatoriamente autoritarismo. Porém, o autoritarismo que permite a aplicação de políticas extremas permite também abuso de poder sobre a população, que se manifesta de maneiras semelhantes quer em regimes de direita e esquerda.

Os governos de extrema-esquerda são na sua maioria governos autoritários, que têm grande oposição, e recorrem a violência para chegarem e manterem o seu poder. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e República Popular da China, os regimes comunistas mais extensos, têm uma história sangrenta que se prolongou pelo século XX, e que atualmente ainda tem repercussões extensas não só nos países que governaram, como nas nações vizinhas.

Além das mortes diretamente causadas por supressões, alguns historiadores culpam alguns regimes pelas crises de fome que ocorreram durante a sua governação. Destacam-se a grande fome Chinesa (1959-1961), com mais de 15 milhões de mortes (1); a fome na Coreia da Norte (1994-1998) (2); e a fome na União Soviética (1932-1933), com cerca de 7 milhões de mortes (3). Esta última vitimou maioritariamente ucranianos (3 milhões) (4), e foi reconhecida em 2006 como genocídio (Holodomor) (5).

Por último, a situação atual que se passa na China com a etnia Uigur (6,7) é francamente arrepiante. Apesar de ser em menor escala em comparação com o Holocausto, é assombroso ver que algo que devia ter ficado para trás na História está a ser repetido. Durante a 2ª Guerra, o próprio povo alemão não sabia tudo o que se passava nos campos de concentração, e o que sabemos atualmente deve-se à vitória dos Aliados. Para os Uigures não haverá 27 de janeiro.

Na prática, regimes que seguem ideologias extremistas resultam sempre em morte e sofrimento. Numa sociedade humana que se quer justa e livre não há lugar para governos com ideologias extremas. 


Autora: Ana Santos

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

NÃO

A extrema-esquerda pode ser definida como uma ideologia anticapitalista de índole revolucionária com a pretensão de estabelecer o socialismo ou comunismo. Em Portugal, são erradamente considerados de extrema-esquerda partidos como o PCP ou BE, ignorando o quão bem estão integrados na democracia burguesa e cujas práticas e objetivos não vão além da social-democracia.

Muitos tentam comparar o socialismo e o fascismo, afirmando que os extremos políticos se tocam. Este sentimento é mais prevalente no centro e na direita política e é reflexo da hegemonia cultural anticomunista, a qual tem razões históricas e geopolíticas de origem complexa para este texto que se pretende breve. 

Mas será que aqueles que ousam esta comparação não são mais próximos da extrema-direita do que aquilo que pensam? Estes “centristas iluminados” ou até autoproclamados liberais e os seus regimes estão historicamente ligados ao apoio a ditaduras. Alguns exemplos disso são o apoio de Margaret Thatcher (ex-primeira-ministra britânica pelo partido de centro-direita Partido Conservador) a Augusto Pinochet (ditador chileno) (1), o apoio de Friedrich Hayek (economista liberal) a António de Oliveira Salazar (2) e ao regime de Pinochet, (2,3) a apologia do fascismo feita por Ludwig von Mises (economista liberal) (4) e o facto de ter sido membro do governo fascista de Engelbert Dollfuss (ditador austríaco), (5) a aliança entre o Partido Liberal Italiano (partido de centro-direita) e o Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini (ditador italiano) (6) ou os elogios de Milton Friedman (Nobel da economia liberal) a Pinochet (3).

Em Portugal temos o exemplo do PSD, de centro-direita, não ter problemas em aliar-se ao partido de extrema-direita Chega. Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional madeirense e líder do PSD/Madeira defendeu mesmo uma aproximação do PSD ao Chega, com o objetivo de derrotar a esquerda (7). Outro exemplo foi o acordo entre o PSD e o Chega para ser viabilizado o governo dos Açores (8).

As razões que levam a esta aliança histórica entre os “centrismos” e “direitas moderadas” e a extrema-direita passam pelos interesses de classe burgueses na busca da manutenção do seu papel na sociedade contra as ameaças (leia-se, reclamar direitos para os trabalhadores) que a esquerda faz. Preferem proteger ditaduras, principalmente em alturas de contestação social decorrentes da exacerbação das contradições do capitalismo.

Qualquer defesa de proximidade entre a extrema-esquerda e a extrema-direita é iliteracia política, histórica e filosófica. A denominada extrema-esquerda está ligada à luta pelo fim do colonialismo, pelos direitos das minorias raciais e pelos direitos das pessoas LGBTQI+. Isto está em oposição com a extrema-direita que nestes assuntos toca, outra vez, muito do centro e da “direita moderada”. A título de exemplo, temos Nelson Mandela (o mais poderoso símbolo da luta contra o regime segregacionista do apartheid) que pertenceu ao comité central do Partido Comunista Sul-Africano (9) e nomeou até Joe Slovo (marxista-leninista sul-africano) para Ministro da Habitação do seu governo (10). Ou até Martin Luther King Jr. (reconhecido mundialmente pela luta contra a segregação racial nos EUA) que era anticapitalista (um extremista de esquerda para alguns) (11) e chegou mesmo a escrever estar desapontado com os “brancos moderados” por estes preferirem a “ordem” à justiça (12).

Vamos deixar de comparar as pretensões ideológicas de Saramago (13) e Einstein (14) com as de Ventura e Hitler?

Autor: José Vicente Castro

Referências:

NÃO:

  1. Thatcher stands by Pinochet. disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/304516.stm

  2. A União Europeia, as políticas sociais, e os fundamentos: de Hayek para Salazar, até aos liberais autoritários. disponível em
    https://www.esquerda.net/dossier/uniao-europeia-politicas-sociais-e-os-fundamentos-de-hayek-para-salazar-ate-aos-liberais

  3. Neoliberalism in Chile and the cost of human life. disponível em
    https://moderndiplomacy.eu/2021/02/19/neoliberalism-in-chile-and-the-cost-of-human-life/

  4. Liberalism: In the Classical Tradition. disponível em
    https://mises.org/library/liberalism-classical-tradition/html/p/29

  5. Meaning of the Mises Papers, The. disponível em https://mises.org/library/meaning-mises-papers

  6. Italian Fascism, 1915–1945 disponível em
    https://srisa.org/rw_common/plugins/stacks/armadillo/media/PhilipMorganItalianFascism19151945SecondEditionTheMakingoftheTwentiethCentury2004.pdf

  7. Miguel Albuquerque defende aproximação do PSD ao Chega. disponível em
    https://rr.sapo.pt/2020/08/06/politica/miguel-albuquerque-defende-aproximacao-do-psd-ao-chega-e-fundamental-que-o-centro-direita-se-junte-para-derrotar-a-esquerda/noticia/202629/

  8. Chega anuncia acordo com o PSD nos Açores. disponível em
    https://observador.pt/2020/11/06/chega-anuncia-acordo-com-o-psd-nos-acores/

  9. SACP statement on the passing away of Madiba. disponível em
    https://web.archive.org/web/20160303223354/http://www.sacp.org.za/main.php?ID=4151%20

  10. Funeral de Joe Slovo. disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/funeral-de-joe-slovo/

  11. The 11 Most Anti-Capitalist Quotes from Martin Luther King Jr. disponível em
    https://www.commondreams.org/views/2019/01/21/11-most-anti-capitalist-quotes-martin-luther-king-jr

  12. Martin Luther King, Jr. Letter from a Birmingham jail. disponível em
    https://www.africa.upenn.edu/Articles_Gen/Letter_Birmingham.html

  13. "Soy un comunista libertario". disponível em
    https://elpais.com/diario/2004/04/24/babelia/1082763550_850215.html

  14. Einstein, Albert. Why Socialism? disponível em http://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/

SIM:

  1. Smil, V. (1999). China's great famine: 40 years later. BMJ, 319(7225), 1619-1621. doi:10.1136/bmj.319.7225.161

  2. Noland, M. (2004). Famine and reform in North Korea. Asian Economic Papers, 3(2), 1-40. doi:10.1162/1535351044193411

  3. R.W. Davies and S.G. Wheatcroft, The Industrialisation of Soviet Russia, volume 5. The Years of Hunger: Soviet Agriculture, 1931-1933 (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2004. Pp. xvii+555. 49 tabs.) 

  4. Applebaum, A. (2019, November 12). Holodomor. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/event/Holodomor.

  5. Worldwide recognition of the holodomor as genocide. (2021, February 09). De https://holodomormuseum.org.ua/en/recognition-of-holodomor-as-genocide-in-the-world/, consultado a 22/03/2021.

  6. Nebehay, S. (2018, August 10). U.N. says it has credible reports that China holds million Uighurs in secret camps. Retrieved March 22, 2021, from https://www.reuters.com/article/us-china-rights-un-idUSKBN1KV1SU

  7. Dutch parliament: China's treatment of Uighurs is genocide. (2021, February 25). Retrieved March 22, 2021, from https://www.reuters.com/article/us-netherlands-china-uighurs-idUSKBN2AP2CI

BULA MEDICINAL | Estamos entregues aos animais?

Estamos entregue aos animais? 

Era uma vez um País que habitava o ramo mais ocidental da Europa. Dominou o Mundo, as suas terras, os seus mares. Colonizou os 4 cantos do Mundo.

Fomos conhecidos por ter feito uma revolução sem um único disparo, já possuímos um dos melhores Serviços Nacionais de Saúde do Mundo, já tivemos propinas a valores simbólicos, mas isso parece ser cada vez mais história de um livro qualquer que dão agora no apoio à telescola.

E o que nos resta? Bem, resta-nos um País com uma das áreas costeiras maiores do Mundo, com um valor incalculável, com um dos climas mais propícios ao desenvolvimento das mais diversas espécies, seja ao nível de fauna e flora, e ao turismo. Sabemos servir bem, acolher bem, dominamos o inglês de praia melhor que ninguém (que o diga o Zezé camarinha), o portunhol, ou o “avecês” (e até nisto temos talento a saber troçar de quem muitas vezes nos mete de joelhos quando visitamos o seu País).

Não, fazer de Zé Povinho, colocar as mãos nos bolsos, suspirar ainda mais que os estóicos suspiram, aceitar o Fado que cantam os Lusíadas e rezar uma avé Maria em busca de um milagre não pode ser solução nem ninguém o poderá aceitar.

Portugal já foi o maior dos maiores, já foi apenas um sítio neutro nos filmes de Hollywood e passava pelos pingos da chuva (quem não?), mas agora bate os maiores recordes, os recordes negativos...

Segundo um estudo recente o Botswana atingiu níveis de crescimento, democracia e corrupção ao nível de Portugal, sim ouviram bem, de Portugal

Somos empáticos, sabemos desenrascar-nos, somos polivalentes, somos poliglotas. Contudo, cada vez menos dominamos as bases de uma ferramenta útil - a língua da verdade. Não é curioso que criamos as línguas de gato, fabricamos as línguas de veado, desenvolvemos as línguas da sogra, mas esta língua sem dúvida que está fora do menu…

Criticamos o socialismo, aquele conceito aterrador que devemos dividir o dinheiro equitativamente por todos, criticamos os Robin Hoods que querem tirar dos ricos para dar aos pobres, mas quem rouba a todos já é crescimento económico!

Mas pior que isto é mesmo quem acha que ser ladrão e cavalheiro/a é a virtude de cidadão em terras lusitanas.

Para vos dar um exemplo, recentemente, foi noticiado (e comprovado) que alguns de nós distribuía vacinas aos amigos, como quem distribuiu o arroz doce ou o bolo de laranja em tupperwares para os vizinhos. Assume-se como erro, mas quem erra muitas vezes e para o mesmo lado, pode ficar surpreendido quando descobrir que tudo pode ser um padrão. A Sra. Ana Rita Cavaco chamou a isto "fura filas, fina flor do entulho". Provavelmente faltou uma boa quantidade de chá de camomila e cidreira à bastonária, mas faltaram ainda mais memofantes a quem está no poder…

Vergílio Ferreira escrevia que a verdade é um erro à espera de vez

Mas eu diria melhor, num mundo cheio de mentiras universais, e lugares comuns, dizer a verdade até parece ser revolucionário…

Por isso me pergunto – Estaremos entregues aos animais? Seria um insulto dizê-lo. Que venha o Capitão Iglo e que nos salve disto tudo


Autor: António Lopez

POETAS DE ESTETO NA MÃO | O Soneto do Olho

Um dia dissequei-me os olhos,

Pois na busca por uma alma

Supus neles a serena calma 

De quem nos corre p'lo Infinito;


E cansar no circular do sangue

O fulgor do pensamento, essas

Ideações que apenas desgraças

Nos confundem o entendimento,


Somente me levou à angústia

De saber, que bem lá no fundo,

Só nos habita o fim do mundo,


E que em abismo de azares só

Assim floresce, voz que já

Não esquece, o teor da alma humana.


Autor: Tiago de Sousa

Ilustração: Ana Catarina Manaças

Edição de Imagem: Felipe Bezerra