1º Lugar | União Europeia de Valores - Uma Luta por Direitos Adquiridos
A pedra basilar a partir da qual ressoam quaisquer reflexões sobre Direitos Humanos é, de forma tão invariável quanto justificada, aquele que é o documento traduzido no maior número de línguas do mundo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não obstante o mais alto apreço que à mesma é devido, o imperativo moral da União Europeia não se esgota no cumprimento destes “mínimos olímpicos” consensualizados em sede de Assembleia Geral das Nações Unidas. A União Europeia transcende a noção de um mero mercado único de produtos e serviços, prefigurando uma efetiva comunidade de valores. Assim sendo, uma reflexão compreensiva sobre esta estrutura não pode dispensar o conhecimento dos valores europeus consagrados no Artigo 2.º do Tratado da União Europeia, que podem ser enunciados como: respeito pela dignidade humana, pela liberdade, pela democracia, pela igualdade, pelo Estado de direito e pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.
O entendimento do projeto europeu supramencionado tem permitido uma melhoria contínua das condições de vida nos Estados-Membro, contribuindo de forma importante para a sua democratização, para a promoção da tolerância e para a manutenção da paz entre os mesmos. Talvez um dos exemplos mais paradigmáticos desta asserção seja o facto de nos encontrarmos presentemente a viver o maior período livre de conflitos armados nesta região, durando a paz entre a Alemanha e a França – que têm sido inimigos históricos – mais de sete décadas. Estas conquistas vieram a ter reconhecimento público mais alargado com a atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2012 à União Europeia, tendo esta, como forma de exaltar a importância da solidariedade enquanto valor europeu, optado por investir o prémio monetário em quatro projetos educativos destinados a apoiar crianças que sofreram a infelicidade de nascer em países onde esses conflitos são uma realidade dramática.
Se, por ora, o projeto europeu é um caso de marcado sucesso, urge a necessidade de zelar pela sua manutenção. Tomar as conquistas por garantidas e optar pela complacência pode, em última instância, comprometer a continuidade da União e levar a efeitos nefastos para a vida de todos os cidadãos europeus – situação que, evidentemente, afetaria de forma desproporcional aqueles que pertencem a minorias e os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Um exemplo que ilustra a necessidade de batalha constante pela manutenção dos direitos conquistados é o ganho de tração, um pouco por toda a Europa, de movimentos chauvinistas de extrema-direita, cuja plataforma assenta sobretudo em teses populistas anti-imigração e, não infrequentemente, opostas aos ideais de respeito pelo multiculturalismo e pelos direitos fundamentais. A oposição aos valores europeus deteriora a essência da União e conduz inexoravelmente a uma situação de ameaça à sua solidez e sustentabilidade. Desta forma, importa batalhar estes movimentos no campo das ideias – desconstruindo simplificações e generalizações grosseiras – e executar uma abordagem sistémica efetiva, que mitigue de forma eficaz a proliferação deste flagelo. A emergência da direita populista não pode ser totalmente desconectada de um sentimento de descontentamento quanto às condições de vida e de uma certa desconfiança em relação às instituições – e, particularmente, em relação à classe política – que são experienciados por determinadas franjas da população. Assim, o combate ao populismo passa necessariamente por uma melhoria das condições de vida, com reformas que valorizem o trabalho e restituam rendimentos às pessoas em situações mais precárias, bem como pelo aprofundamento da transparência em relação às ações dos decisores políticos. Simultaneamente, deve ser fomentada a inclusão sustentada da promoção dos valores europeus nos programas curriculares das escolas, o que corresponde, no fundo, à defesa dos ideais de inclusão, tolerância, justiça, solidariedade e não discriminação.
Para além da resposta à problemática da emergência de movimentos populistas de extrema-direita, é tão ou mais importante refletir sobre o rumo de países que, pertencendo à União Europeia, têm promovido políticas contrárias aos valores europeus. Refiro-me concretamente ao caso da Hungria e da Polónia, onde se têm verificado violações dos direitos das pessoas LGBTI+, bem como a adoção de medidas autocráticas que põem em risco o Estado de direito democrático nessas duas regiões. No capítulo da violação dos direitos das pessoas LGBTI+, mais diretamente pertinente para a presente reflexão, está em causa a aprovação de uma lei húngara que proíbe a divulgação de conteúdos relacionados com a homossexualidade ou a mudança de sexo a menores de idade, bem como a decisão polaca de criar “zonas isentas da ideologia LGBTI+”. Estas medidas entram em rota de colisão clara com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, como tal, não podem ser toleradas. A bem da integridade do projeto europeu, é necessário um diálogo político construtivo que ofereça soluções imediatas ou, na impossibilidade do mesmo, é imperativo que se avance na execução dos mecanismos previstos no Artigo 7.º do Tratado da União Europeia, concretizando as sanções previstas para os casos de violação dos valores da União.
Neste contexto, impõe-se uma questão de consentânea pertinência: como pode uma pessoa comum contribuir para a resolução de questões tão complexas e que, em grande medida, dependem da vontade política dos decisores? A melhor arma ao alcance de cada um de nós parece-me, justamente, a consciencialização dos decisores de que este assunto é uma prioridade absoluta para os cidadãos que representam. Quem tiver acompanhado de forma atenta as eleições legislativas de 2019, terá certamente notado que o assunto das alterações climáticas entrou na agenda política de todos os partidos, sem exceção, da esquerda à direita. Esta instância representou um caso de marcado sucesso na transmissão das prioridades dos cidadãos aos seus representantes, correspondendo precisamente ao que é desejável neste caso. Com efeito, constatamos que a construção de uma União Europeia mais inclusiva e da qual nos possamos continuar a orgulhar se encontra nas mãos de cada um de nós, na qualidade de cidadãos conscientes, e de todos nós, enquanto sociedade tolerante e multicultural. Este empreendimento é intrinsecamente premente pois, se a luta contra as alterações climáticas é o veículo para que tenhamos um planeta futuro onde viver, a luta pelos Direitos Humanos é o garante de que esse é um planeta onde vale a pena viver.
Autoria: Miguel Bernardino
2º Lugar | A história, e a solidão, repetem-se em ciclo?
“Sempre que te sentires sozinho ou triste, tenta ir às águas-furtadas num dia bonito e olhar lá para fora. Não para as casas e os telhados, mas para o céu. Enquanto puderes olhar sem medo para o céu, saberás que és puro de coração e encontrarás novamente a felicidade.” Palavras de Anne Frank1. Afinal, o que é olhar lá para fora? Através de uma janela? De uma fronteira? De um oceano? Olhar lá para fora permite ver para lá da nossa bolha. E o céu que nos cobre, é sempre o mesmo? Ou para uns, é feito de azuis, nuvens e chuviscos, e para outros de decisões políticas que, bem acima deles, se lhes sobrepõem?
Discutir a pertinência da União Europeia nos dias de hoje exige conhecimento histórico, político, humanitário, ético e um espírito crítico imparcial – é difícil, se não impossível, ser completamente imparcial nestes assuntos, e quem escreve é, naturalmente, uma pessoa que nasceu em determinadas circunstâncias, em muitos aspetos privilegiadas, dirigindo-se a um público-alvo heterogéneo, mas com esta particularidade em comum, minha e vossa, de pertencermos à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Situo-me no mundo, qual pontinho no mapa, e nesta tentativa de imparcialidade por aqui ando, percorrendo os corredores da faculdade, sem nunca ter posto os pés no parlamento, em terras de ação humanitária, ou saber na pele como é ter fome, fome a sério, deixando para trás a terra que me brotou, sem vislumbre de um amanhã sereno. Talvez mais do que qualquer um destes conhecimentos teóricos, discutir a pertinência da União Europeia exige que realmente me importe com o que está a acontecer: eu, que frequentemente, pelos mais diversos motivos, não acompanho suficientemente as notícias – “Neither love nor terror makes one blind: indifference makes one blind.” – James Baldwin2.
A União Europeia nasceu de um parto pouco pacífico, doloroso – mas possivelmente uma filha em muito planeada e desejada: no seio de um contexto pós-Segunda Guerra Mundial e de conflitos entre países vizinhos, no final dos anos 40, início dos anos 50, surgiu a sua semente, uma ideia inicial, de uma próspera união entre 6 países (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e os Países Baixos) que evitasse conflitos e potenciasse o seu crescimento, como um todo. Nos seus anos de juventude foi mudando de nome (originalmente designada como Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), acolhendo cada vez mais nações e, como é natural na adolescência e início da idade adulta, sonhando cada vez mais alto: Em 1957 foi assinado o Tratado de Roma, responsável pela criação de uma plataforma económica e social mais alargada, ao que se seguiram décadas de crescimento económico e alargamento desta união a outros países europeus, incluindo Portugal e Espanha, que integraram a organização em janeiro de 1986. Foi apenas em novembro de 1993, décadas depois do seu início, com o Tratado de Maastricht, que adquiriu o nome de União Europeia. Atualmente reúne 27 países (tomando em conta o controverso Brexit), unidos política e economicamente, num “mercado de movimento livre de bens, capitais, serviços e pessoas”. Quando ligam a televisão revêem-se neste breve retrato histórico?
Permitam-me a liberdade para fazer o que a psiquiatria designaria de uma alteração do pensamento (será pensamento circunstanciado, ideofugitivo ou descarrilamento?): mas prometo que já lá chego. Na primavera deste ano li o aclamado livro Cem Anos de Solidão3, de Gabriel García Márquez, que já há muito muito tempo andava para ler. Livro viciante, rodopio de personagens que nos arrasta pelas páginas numa dança de gerações da família Buendía, por corredores húmidos e quentes de fetos e begónias, nas dores de parto, de amor, de loucura, em histórias de pessoas que tão rapidamente nascem como morrem, sem se aperceberem nem de um, nem de outro. Apesar de ter adorado esta viagem, como em qualquer bom livro, não saí incólume, e alguns aspetos fincaram em mim mais as suas garras do que outros. Algo que me incomodou particularmente foi a naturalidade com que o autor, qual Penélope da Odisseia, tecia tão rica e sumptuosamente a trama de uma qualquer personagem fantástica, daquelas tão vivas e coloridas que nos apelam ao coração, para logo, na brisa fresca da noite, a desfazer em morte ou desgraça. Como se nada fosse. Fazer e desfazer.
A ideia, o propósito existencial da União Europeia, faz sentido, tem lógica. Porém, em pouco parece adequar-se às atuais necessidades: aqui incluem-se, por exemplo, as crises humanitárias com que é confrontada, exacerbadas pela pandemia, que gerou uma crise económica e de saúde pública. Desta última, surgiu a necessidade de um maior apoio aos diversos sistemas de saúde internacionais, e à pretensa equidade no acesso aos cuidados de saúde – afinal pouco colmatados em situações como a disparidade mundial no acesso à vacinação e, consequentemente, aos certificados de vacinação e seus benefícios. Porém, esta lógica que lhe subjaz não alimenta náufragos e tão pouco mitiga a ascensão da extrema-direita e os eventos que lhe estão associados, qual círculo vicioso que nos transporta de novo ao início, à guerra, à exclusão, aos letreiros nas portas dos cafés de “aqui não entram (…)”. Os movimentos de extrema-direita parecem florescer, em parte, do medo pelo desconhecido, e da adoração ao próprio umbigo. Porém, eu diria que uma União, a existir, no real sentido da palavra, além-mar das burocracias e legislações, seria aquela que nos permitiria “olhar lá para fora. Não para as casas e os telhados, mas para o céu” – e encontrar a felicidade ao saber que esse céu é feito de gente, cada qual com a sua maleita e discórdia e dor, procurando não mais que ser feliz. Na palavra União, caberiam a tolerância e a flexibilidade para cimentar os Direitos Humanos. Há, não obstante, inconsistência nas medidas implementadas pela União Europeia. Um certo travo a “fazer, em certas ocasiões, noutras tantas desfazer”. Casamento instável de países, onde frequentemente se priorizam outros interesses que não os humanitários.
É uma surpresa quando estas teorias abstratas me entram porta adentro do consultório.
Sizwe é pequeno, negro, de pulmões bem cheios de cada vez que lhe toco para o pesar ou medir e se decide a chorar de voz plena. Sizwe é, na verdade, significado de nação: nome de família ligado à política e história da África do Sul, que na altura do Apartheid reclamava a sua liberdade e a revolta com palavras como esta, nas ruas, na rádio, cravadas na alma do povo que se queria livre. Da liberdade de uma nação, se fez um nome comum. No centro de saúde onde estagiei, a população exige-me rápida e frequente adaptação ao utente: Por entre a alegria inebriante típica de algumas nacionalidades que se repetem, a timidez da grávida que só fala inglês e desperta no entendimento de que posso ser tradutora (inglesa, irlandesa, indiana?), as histórias da mesquita dos muçulmanos, as aventuras e desventuras de africanos dos mais diversos pontos do continente, viajo, sempre a registar a parte médica no S clínico, a parte humana em mim, na esperança de ter memória suficiente para reter ambos. O certo é que nos dias em que estagio com o médico que ouve, ri e se entrega, dali saio menos embrenhada no “eu”, mais ampla e como que elevada pela perceção de realidades paralelas logo ali à minha beira. Nos outros, em que me calha o profissional indiferente, surdo, prescritor, entusiasta de respostas fáceis, acordo para a sala de espera cheia de gente perdida, incrédula e amassada, em movimentos e frases desconexas, tentando a todo o custo manter a cabeça à tona. Assim será sempre, julgo: depende de pessoas, dispostas a ouvir outras pessoas e a adaptarem-se aos novos constrangimentos. Estar vivo é estar em constante mutação, e a política, em certa medida, é um bicho que se quer vivo e flexível.
A união é fundamental – já o Hit da minha Noite da Medicina o diz destes loucos 6 anos: “Porque tu não vais fazê-los sozinho” – e afinal, a paz – física ou espiritual, de um aluno, cidadão, país ou mundial, em tanto nos faz depender uns dos outros. Por dizer, por saber, estão os próximos passos que a União Europeia irá tomar. Pergunto-me se terá a coragem e a ousadia que urge, de enfrentar este vírus que é a revolta e o descontentamento embrenhados nas ruas, ou, se como pensava Úrsula “o tempo não passava, mas andava às voltas”3 - A história, e a solidão, repetem-se em ciclo.
Autoria: Mariana Bettencourt
3º Lugar | Europa olha-te ao espelho
Era uma tarde banal de um dia comum de uma aula monótona de História num ano inespecificamente colocado entre 2011 e 2017 (creio que assim ainda apanho a larga maioria dos possíveis leitores deste texto). Nessa mesma tarde, que nenhum de nós recorda, mas que a realidade do nosso conhecimento atesta que existiu, foi-nos ensinado, com a voz indutora de hipnose (digna de ser reconhecida como tratamento para a insónia) que imagino que todos os professores de História têm, o nascimento da União Europeia (UE).
Uma história merecedora de ser conto para crianças, tal é a simplificação do processo que é lecionada. Um dia, meia dúzia de países “amigos” decidiram que era mesmo boa ideia que se pudesse deixar que o carvão e o aço passassem a ter um mercado comum. Umas décadas mais tarde, essa mesma meia dúzia fez mais “amigos” e decidiram que era mesmo giro sermos todos assim como um país, mas sem deixarmos de ser países individuais. Oh stôr, afinal não era preciso uma aula de hora e meia para explicar isto.
Mas se foi esse o peixe que nos venderam, não me parece que a realidade europeia seja assim tão simples.
Numa curta pesquisa pelo site da União Europeia, visitando a secção de “Princípios, países, história”, encontramos uma página com os objetivos e valores da União Europeia. Achei que seria relevante olharmos em conjunto para algumas destas informações, só para ter a certeza que toda a gente vê a mesma coisa.
Relativamente aos objetivos, deixo aqui a minha proposta de adenda:
Onde se lê “favorecer o desenvolvimento sustentável, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, e numa economia de mercado altamente competitiva, com pleno emprego e progresso social” e “promover a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os países da UE” deverá acrescentar-se uma alínea a): a Crise Financeira da Grécia constitui uma exceção à aplicação deste objetivo;
Onde foi redigido “combater a exclusão social e a discriminação” deverá notar-se que este objetivo apenas se aplica a não refugiados;
Onde foi definido “estabelecer uma união económica e monetária cuja moeda é o euro” deverá deixar-se claro que um dos membros fundadores da União Europeia nunca usou o euro e já não faz parte da União, enquanto muitos outros membros se mantêm excluídos da chamada “Zona Euro”.
Temos ainda uma secção relativa a valores da União Europeia, que assinala a Dignidade do ser humano e os Direitos Humanos (vide campos de refugiados), a Liberdade, Democracia e Igualdade (vide Governo da Hungria) e o Estado de Direito (vide o Pedido da Comissão Europeia relativo a sanções financeiras à Polónia).
Mas de facto também é pedir demasiado que uma instituição de relevância política e económica global cumpra com os objetivos e valores que definiu para si mesma, não é?
Esta pequena viagem pela história recente (e sublinho, recente) da União Europeia relembra apenas um contexto mais cruelmente real, a inalterável hipocrisia do nome União Europeia.
Note-se que de Europeia tem tudo (à parte dos territórios ultramarinos de alguns dos seus membros). Mas de União, nas imortais palavras de Augusto Gil, “há pouco, há poucochinho”.
A União Europeia é um daqueles team-buildings empresariais: estamos cá todos pelo dinheiro e não tanto para ser amigos, mas vamos fingir que nos damos com a Alemanha porque ela anda a comer o chefe, e pode ser que isso ainda nos ajude a ter um aumento de salário. Pelo menos a herdade que alugaram em Bruxelas para o jantar de Natal tem umas condições impecáveis.
Desde muito cedo que todos os países concordaram que, apesar de se querer criar uma identidade europeia, cada país deveria permanecer um ser independente. Nem por um segundo se quis pôr de parte antigas rivalidades, particularidades culturais ou patriotismos na busca de uma “cultura europeia”. Caída neste poço anárquico de discórdia, a “identidade europeia”, que tantos gostam de apregoar, rapidamente se desfaz num ideal bacoco, num caixão vazio que não merece funeral.
Se no plano político global queremos ser a União Europeia, também queremos ser a França, a Alemanha, a Espanha, etc. Cada um deseja ter duas vozes, mantendo o conhecimento de que apenas a voz conjunta consegue ter o impacto desejado. E, pior que tudo, caímos numa esquizofrenia interna de vozes dissonantes que, como qualquer doente psiquiátrico, insistimos em fingir como coesão aos que nos rodeiam.
É sobre o peso das sucessivas hipocrisias, sobre o peso das intermináveis diferenças, sobre o peso das crises humanitárias, financeiras, políticas, sobre o peso dos ideais mal concretizados e sobre o peso das ideias ricocheteadas, que os pilares do Pártenon Europeu começam a rachar.
E nas rachas entranha-se a indiferença. Entranham-se os eternos envios de deputados europeus com os votos de poucos para tomar decisões que afetam tantos. Tão inconsequente na mente é esse sufrágio. Sufragamos a indiferença e ninguém vence senão quem assenta no seu poleiro.
Dessa indiferença, cresce a raiva. A raiva desmedida por uma instituição que mal conhecemos. A desconfiança e acusação de leis que afinal são nossas e não desses “europeus”. O apontar do dedo à Europa como causa de todos os nossos males, tantas vezes este dedo apontado na direção errada. E aqui se deixa crescer mais uma raiz do eucalipto populista.
Alternativamente, cresce a cobiça. O eterno português que, de palito na boca e cerveja na mão, proclama que “quero lá saber da Europa desde que o dinheirinho venha cá parar”.
Não surpreende, pois, que tantos de nós portugueses, que tanto devemos aos infinitos fundos europeus, nos mantenhamos enamorados desses “europeus”. Não foi ao acaso que Fernando Pessoa nos descreve como, da Europa, o rosto que fita: tantas vezes comemos da sua mão e tantas vezes tivemos mais olhos que barriga. Não espanta também que, nessa mesma descrição, a Inglaterra seja um dos cotovelos da Europa: tal foi a dor que sucumbiram ao rancor erradamente assestado.
Mas mais do que apontar o dedo àquilo que cada vez é mais difícil de disfarçar com a maquilhagem política, urge refletir sobre o nosso papel enquanto supostos cidadãos europeus no meio desta máquina institucional. Urge refletir sobre onde está o balanço certo entre a individualidade e autonomia nacional e a necessidade de enfrentar crises como uma legião romana, pautados pela união, pela tática, pela estabilidade.
Poderemos continuar a chamar-nos uma União de Nações Europeias, e simultaneamente oscilar entre a completa aceitação de refugiados como vítimas das circunstâncias criadas pelo interesse de poucos, ou a total rejeição destes mesmos refugiados como aproveitadores de uma desculpa para virem tirar aquilo que vemos como nosso? Será aceitável uns fecharem as fronteiras enquanto outros nem uma porta conseguem construir, tal o dilúvio?
Poderemos continuar a declarar-nos uma União de Nações Europeias sem abordarmos os maiores temas do século XXI, como as alterações climáticas, as circunstâncias pandémicas, as crises económicas, numa perspetiva pautada pelo rigor e sincronismo?
Europa, olha-te ao espelho, e diz-me quem vês.
Autoria: Afonso Ribeiro
Menção Honrosa | O Reino Invisível
Segundo o filósofo Gilles Deleuze, a Europa entrou na era da sociedade de controlo. Esta superou a sua antecessora, a sociedade de disciplina, que se centrava em estruturas autoritárias (a prisão, a fábrica, a escola, o hospital psiquiátrico) baseadas em espaços fechados, dando origem a um novo princípio orientador das acções humanas: o controlo cibernético. Como funciona isto?
Darei um exemplo explícito: imaginem um mundo onde uma pessoa vai a uma entrevista de trabalho numa empresa; passadas algumas horas, a empresa compra aos data brokers os dados de saúde do candidato e descobre que nos meses anteriores ele comprou fármacos antidepressivos; por fim a empresa decide rejeitá-lo, pois existe possibilidade de o candidato voltar a desenvolver sintomas depressivos, o que seria prejudicial para o fluxo de trabalho da empresa. Parece ficção científica? Pois isto está muito próximo de (ou já mesmo a) acontecer: a exploração de dados de saúde já começou, e sabe-se que a aplicação de encontros Grindr partilhou informações sensíveis a empresas de dados e marketing, entre as quais se os utilizadores eram ou não HIV positivos. Carissa Véliz, do Institute for Ethics in Artificial Intelligence da Universidade de Oxford, alerta para o facto de os dados essenciais dos indivíduos lhes estarem a ser arrancados como forma de construir cada vez mais barreiras e discriminação.
Encaminhamo-nos para um período de servidão. Um novo tipo de escravatura em que o escravo não sabe que o é, porque ama os seus grilhões. Os direitos humanos de liberdade, privacidade e autodeterminação são violados sistematicamente sem explicitamente o serem, o que torna mais paradoxal a nossa sociedade globalizada.
Em Portugal, adultos que sofreram doença oncológica durante a infância ou adolescência não conseguem obter seguros de saúde, seguros de vida ou crédito à habitação e, portanto, estão barrados do mercado de trabalho. Mais uma vez, os dados pessoais perseguem e cortam o caminho ao ser humano. A nossa sociedade precisa cada vez mais do “direito ao esquecimento.”
A manipulação não se limita apenas a servir os grandes grupos empresariais. Chegou o tempo em que o poder governamental está intrinsecamente conectado com as empresas de big data, uma aliança entre o aparelho estatal e os grandes detentores de capital económico. Os governos agora são capazes de utilizar as mesmas estratégias que as grandes empresas, para manipular os seus cidadãos.
Em 2016, o Facebook permitiu que a empresa Cambridge Analytica extraísse do seu sistema enormes quantidades de informação privada de milhões de pessoas em vários países (estima-se que seja o inacreditável número de 87 milhões de pessoas), e que esta empresa passou os dados a outras entidades, com fins políticos. O jornal britânico The Guardian revelou como a Cambridge Analytica, a trabalhar para a campanha do senador norte-americano Ted Cruz, adquiriu dados de dezenas de milhões de utilizadores do Facebook (sem a autorização dos mesmos), através de testes de personalidade online desenvolvidos pelo psicólogo Aleksandr Kogan da Universidade de Cambridge – testes de personalidade que permitem construir perfis psicológicos em campanhas político-publicitárias destinadas a públicos-alvo.
Carole Cadwalladr, uma das jornalistas britânicas que expôs as atividades da Cambridge Analytica, escreveu no Twitter: “The speed and scale of the damage Facebook is doing to democracies around the world is truly terrifying.”
Mas isto não ficou por aqui: a Cambridge Analytica esteve, alegadamente, envolvida com a campanha para o Reino Unido sair da União Europeia. Segundo um ex-funcionário, Christopher Wylie, “não teria havido Brexit sem Cambridge Analytica.” Contudo, segundo a Comissária para a Informação, Elizabeth Denham, os resultados oficiais da investigação não indicam envolvimento da Cambridge Analytica nas fases avançadas do processo do Brexit.
Mais recentemente, em Setembro de 2020, saiu à luz um memorando da autoria de Sophie Zhang, ex-engenheira de dados do Facebook, que revelou que a empresa pouco ou nada fazia no sentido de impedir redes de influência de usarem a plataforma como meio de distorção de factos e de manipulação de eleitores, em vários países: “I know that I have blood on my hands by now.” Um dos piores exemplos é o caso do Azerbaijão, em que foram produzidos 2,1 milhões de comentários de perfis falsos a atacar os líderes da oposição e a louvar o atual presidente Ilham Aliyev bem como o seu partido, YAP. A equipa responsável praticamente ignorou a situação e, mesmo depois de ter ligado a campanha de propaganda com o partido YAP, deixou que as ações seguissem impunemente. Estas tácticas de manipulação também estão presentes em solo europeu: em Espanha, uma rede operou no sentido de deixar likes em publicações do Ministério da Saúde, embora os indícios não sejam claros sobre quem é que motivou esta ação.
A lei de Regulação da Proteção Geral de Dados da União Europeia (General Data Protection Regulation – GDPR) faz parte de uma estrutura legal mais ampla que se encaixa no seguimento da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), documento que consagra o direito à privacidade. Esta lei, que entrou em efectividade em 2018, coloca em papel central a legalidade, a transparência, a responsabilidade dos analistas de dados perante a justiça, a minimização da colheita de dados e a confidencialidade, entre outros princípios (Artigo 5.1-2).
Mas o que pensam os políticos europeus do uso e abuso de dados pessoais?
Existe um caso paradigmático, relatado pela BBC News em 2020: uma investigação de dois anos realizada pelo Information Commissioner’s Office (ICO) do Reino Unido descobriu que os dados de milhões de adultos nesse país tinham sido analisados e processados por uma empresa chamada Experian (da qual tanto o Partido Conservador quanto o Trabalhista adquiriram serviços…). Para o ICO bastou recomendar à empresa uma lista de alterações a fazer ao seu protocolo, de modo que a sua atividade se encaixasse com a GDPR e a Experian poderia continuar no mercado – isto só mostra o apelo sedutor que a análise de dados tem na classe política.
Neste momento, a União Europeia está a preparar uma nova legislação que regule profundamente estes assuntos e que consiga combater o abuso dos direitos e vulnerabilidades dos cidadãos europeus, a Lei dos Serviços Digitais (Digital Services Act). Segundo a “Proposal for a REGULATION OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on a Single Market For Digital Services (Digital Services Act) and amending Directive 2000/31/EC”, apresentada ao Conselho Europeu em dezembro de 2020, está prevista (capítulo IV, secção 1) a existência de um Coordenador dos Serviços Digitais, a ser nomeado pelo governo de cada Estado-Membro, destinado a aplicar a legislação europeia nesta matéria.
Todavia, nesta proposta de lei existe um grande risco: se é um coordenador escolhido pelo governo a decidir o que é o “conteúdo ilegal” online, então o que decidiria o governo polaco acerca do discurso de ativismo dos direitos LGBTI+, ou o governo húngaro sobre informação acerca dos direitos humanos dos refugiados? Como se sabe, os governos polaco e húngaro são conhecidos pela sua hostilidade aos movimentos supracitados – muito provavelmente usariam o seu poder para ilegalizar conteúdo online relacionado com eles, criando a ameaça de um “Ministério da Verdade” orwelliano. E se os governos começarem a utilizar estes meios como um novo tipo de censura? Ou como ferramenta de discurso de ódio e xenofobia?
Se aceitarmos a possibilidade (como foi sugerida) de que a Cambridge Analytica, com base em dados do Facebook, foi um fator que determinou a saída britânica da União Europeia, então como não considerar que algo semelhante poderá acontecer a seguir, noutro país?
Os próximos anos serão, muito provavelmente, de fratura, em que os vários grupos de interesses dentro da União Europeia, ao longo do espectro político, irão utilizar cada vez mais os meios de manipulação digital para erodir as estruturas democráticas e fomentar desunião. E é sabendo desta ameaça que teremos de ir buscar armas para lutar.
Autoria: João Almeida
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
2º Lugar:
Anne Frank (1947) – O Diário de Anne Frank
James Baldwin (1974) – Se esta Rua Falasse
Gabriel García Márquez (1967) – Cem Anos de Solidão
Menção Honrosa:
Brusseau J. Deleuze’s Postscript on the Societies of Control: Updated for Big Data and Predictive Analytics. Theoria 67(164):1-25 (setembro, 2020). DOI:10.3167/th.2020.6716401
“São empresas que tentam ter um ficheiro de cada utilizador de Internet, este ficheiro pode conter coisas como o que procuras online, o que compras, os teus registos médicos, a tua educação, o teu poder de compra. Depois vendem estes dados a quem paga mais: podem ser seguradoras, bancos, empresas de marketing ou governos.” In: Marques V. Entrevista a Carissa Véliz – “É muito fácil saber com quem dormes através dos teus dados”. Sábado N.º 878, Semanal – 25 de fevereiro a 3 de março de 2021 (Lisboa); pp. 24-26.
Ibidem, e: Véliz C. Privacy and digital ethics after the pandemic. Nat Electron 4, 10–11 (2021). https://doi.org/10.1038/s41928-020-00536-y
https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/direito-ao-esquecimento-porque-sobreviver-a-um-cancro-em-crianca-nao-e-suficiente
https://newint.org/features/2019/02/11/interview-Slavoj-Zizek
https://www.bbc.com/news/technology-43649018
https://www.bbc.com/news/technology-43649018
https://www.theguardian.com/uk-news/2018/may/06/cambridge-analytica-kept-facebook-data-models-through-us-election
https://www.bbc.com/news/technology-54161344
https://www.politico.eu/article/cambridge-analytica-leave-eu-ukip-brexit-facebook/
https://observador.pt/2018/03/26/o-brexit-nunca-teria-acontecido-sem-a-cambridge-analytica-revela-ex-funcionario/
https://www.politico.eu/article/no-evidence-that-cambridge-analytica-misused-data-to-influence-brexit-report/
https://www.abc.net.au/news/2021-04-29/facebook-whistleblower-sophie-zhang-government-manipulation/100103408
https://www.theguardian.com/technology/2021/apr/12/facebook-fake-engagement-whistleblower-sophie-zhang
Ibidem.
https://elpais.com/tecnologia/2020-04-20/facebook-investiga-cientos-de-perfiles-falsos-que-daban-like-a-mensajes-del-ministerio-de-sanidad.html?rel=listaapoyo
https://gdpr.eu/what-is-gdpr/
https://www.bbc.com/news/technology-54915779
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=COM%3A2020%3A825%3AFI
Aqui parafraseio uma passagem do artigo “European plans to regulate internet will have major impacts on civic space at home and abroad”, de Iverna McGowan, disponível em: https://www.openglobalrights.org/european-plans-to-regulate-internet-will-have-major-impacts-on-civic-space-at-home-and-abroad/?lang=English