Há vultos debaixo da escada, da escada da minha inconsciência.
Há sombras de memórias que nunca foram, cicatrizes de dores que só pensei, que gritam como gatos, os habitantes de sempre de debaixo das escadas. Das escadas das cidades de outros, cheias de casas com outros, os degraus que nunca calco, degraus de outras escadas, escadas duras, concretas, reais. Cinzentas, como que numa mostra redundante da sua realidade.
Mas esta escada de nada de real só liga o andar do sonho ao do pesadelo. Os seus degraus são feitos da matéria da mente, da que se enrola pelos fundos escuros, que se deixa ficar à margem das vozes dos sensos, bons ou maus, que não se mexe a menos que lhe mexa. E nunca lhe mexo. É cinzenta, mas perde-se no escuro dos arredores. E os ares em redores são de sombra, não de ruas iluminadas, não de passeios calçados, terra corrida por novelos de pés, estradas resmagadas por enredos de rodas. É cinzenta só como o resto da dormência mental. É cinzenta, é. Mas não é real.
Se fechar os olhos por muito tempo, e eles rodarem para trás, de cansaço e desistência, vejo a escada no lado oposto do crânio, parada, à espera de um holofote que a ilumine na sua metáfora. Mas os sítios que não estão nos mapas não precisam de sol, nem de lua, são estrelas de um filme sem graça que se desgraça num cinema de esquina que tresanda a abandono e a passado. Estas são as ruas da nudez, da palidez doente, da morte que ainda respira. E ruas destas não brilham. E ruas destas atingem-nas sangue e balas, recheadas de desprezo e nojo. Mas não fotões.
O passado passa por baixo das minhas escadas, lança mãos decadentes para as ilhargas sós. E quando os vultos debaixo da escada têm fome, os vultos engolem memórias. Depois, os vultos cospem breu e gritam sombras ensurdecedoras. E o som é como um tiro, e abro finalmente os olhos, alerta. Desperta! Se o sono é de medo, desperta!
Alerta, mantenho-me lerda para a lenta morte a que voto a escada, a minha escada. Caíram pedras, o corrimão cedeu. Os abutres voam acima, os vultos escondem-se debaixo. E continuo a sorrir, ignorante, sabedora de que é a única solução.
Que não há procura que volte a transformar o soluço em mais que ar rápido goela abaixo. Seco, poluído, só ar.
Que não há antídoto para que o abraço volte a saber a mais que aperto que vem e vai, deixando uma nódoa negra, de recordação suja. Fraco, frio, só aperto.
Que não há poção, feitiço ou reza que traga beijo ao calor e pressão de outros lábios no frio defunto dos meus. Suado, profano, comprado.
Debaixo da minha escada, vivem vultos.
Debaixo da minha escada, encontram morada interna os infernos de todas as falhas e faltas.
Debaixo da minha escada, está todo o lixo que varri e afoguei. Os átomos que um dia foram animados decaem, as pessoas despedem-se, viajam para expedições no subsolo e não voltam mais. As flores que lhes damos trazem só abelhas. E o lixo que vou sendo traz só vermes.
Ver-me verme, enfim, quando eles, com as bocas viscosas e sedentas, levarem todo o silêncio senil. Ei-la, esta, a vida eterna!
O reino dos réus!
Quando vieres ressuscitar os vivos e os mortos, eu ficarei com os que não sabem que não sabem decidir!
Autor: Ana Fagundes - 2º Ano
Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano