LER PARA CRER | O impacto das USFs na saúde dos cidadãos

"Temos uma médica e a médica trata de nós"

Utente da USF Costa do Mar (Costa de Caparica)

Os Cuidados de Saúde Primários (CSP) são a pedra basilar de um Sistema de Saúde. Em Portugal, os CSP passaram por várias reformas ao longo das décadas, visando criar uma estrutura organizacional cada vez mais coesa, com maior capacidade de resposta face às necessidades de saúde da população, garantindo a qualidade dos serviços prestados. As Unidades de Saúde Familiar (USF) são apenas uma parte dessa reforma, mas com um impacto enorme na prevenção e promoção da saúde, funcionando como uma primeira linha de assistência em saúde primária aos cidadãos, garantindo maior acessibilidade, eficiência e qualidade, com o esforço e dedicação dos profissionais de saúde, incentivados ao bom desempenho por um regime retributivo especial que contempla a produtividade.

De uma forma breve e visualmente apelativa, apresentamos uma perspetiva histórica da evolução dos CSP em Portugal:

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Fontes: (1) André N. Unidades de Saúde Familiar: o seu papel na reforma dos cuidados de saúde primários. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; 2013; (2) Entidade Reguladora de Saúde. Estudo sobre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, 2016;

As USF são uma das unidades orgânicas que compõem os CSP em Portugal e provaram ter um enorme impacto positivo a vários níveis, tais como, aumento do número de consultas médicas, com maior abrangência de utentes, menor custo operacional, maior efetividade, maior satisfação dos cidadãos, entre outros. O caso particular das USF tipo B é apontado em vários estudos, como a unidade orgânica dos CSP com o melhor ranking em vários indicadores. Assim, decidimos explorar um pouco mais sobre este tipo de unidades (3-5). É importante saber que existem três tipos de USF implementadas em Portugal: tipo A, tipo B e tipo C (ver tabela abaixo).

Modelos de USF – A | B | C

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Fonte: (6) Ministério da Saúde. Despacho nº 24101/2007. Diário da República; 2007 p. 30419.

Desde 2006 que o número de USF tem vindo a crescer, sendo que em 2019 contabilizou-se um total de 553 USF em atividade (299 tipo A e 254 tipo B)

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Figura 1 - Número de USF de modelo A e de modelo B que iniciaram atividade anualmente entre 2006 e 2019.

Fonte: (5) USF-AN. O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2017/2018

Os números que justificam a implementação das USF

Foram vários os estudos realizados ao longo dos anos no âmbito do CSP e selecionamos alguns que se debruçam essencialmente sobre os centros de saúde, as UCSP e as USF (tipo A e tipo B). Destacamos três estudos que foram realizados entre os anos de 2005 e 2015, no âmbito da satisfação dos cidadãos com os CSP, tendo em conta a metodologia “Europep”. Obtiveram-se resultados francamente positivos, com um aumento percentual da satisfação dos cidadãos de 22,6%, em 10 anos (ver tabela em baixo) (3).

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Fonte: (3) USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro

Em 2018, num estudo realizado pela Coordenação para a Reforma dos CSP, ficou demonstrado que as USF B têm mais ganhos em saúde imediatos e a médio/longo prazo e também são as mais eficientes, com um custo global inferior em 352.832 €, comparando com outros tipos de unidades de saúde. Tendo em conta este pressuposto e a avaliação do impacto do modelo organizacional, foi realizada uma previsão dos custos e consequências desse panorama, caso todas as UCSP fossem USF do tipo B (3-5)). Aqui estão alguns pontos que selecionámos:

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Fonte: (3) USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro

Segundo este estudo, se tivesse sido aplicada uma reforma nos CSP, em que todas as UCSP se tornassem USF do tipo B, haveria uma franca melhoria dos resultados em saúde em todos os indicadores e uma redução significativa dos custos globais, apesar do aumento do custo com os recursos humanos, gerando uma poupança de 103.611.995€ em 2015 (4).

Tendo em conta todos os dados recolhidos, é seguro afirmar que com a criação das USF foi possível oferecer aos cidadãos um serviço de saúde com mais eficiência, maior acessibilidade, maior satisfação dos cidadãos e ao mesmo tempo um ambiente de trabalho mais atrativo e cooperante, garantindo assim uma maior qualidade dos serviços de saúde. No entanto, existem oportunidades de melhoria a considerar e a continuidade do sucesso das USF está intimamente dependente da continuidade do interesse, tanto das entidades governamentais como dos profissionais de saúde (5,7).

USF Costa do Mar

o exemplo prático da implementação de uma USF tipo B

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A RESSONÂNCIA selecionou a USF Costa do Mar, na Costa de Caparica, como um exemplo prático da implementação de uma unidade tipo B, onde estivemos à conversa com representantes de todos os grupos profissionais.

Esta unidade de saúde é recente (implementada a 15/05/2015) e surgiu do desejo de um grupo de Internos da especialidade de Medicina Geral e Familiar em contribuir para a melhoria dos cuidados de saúde de uma população carenciada, aliando à possibilidade de liderança e autonomia que a USF tipo B permite.

A USF Costa do Mar conta com uma equipa médica composta por 10 médicos, 10 enfermeiros e 6 secretários clínicos, estando a Coordenação a cargo da Dr.ª Joana Neves Pereira, especialista em Medicina Geral e Familiar. Aqui fica um excerto desta entrevista:

Entrevista - USF Costa do Mar

Profissionais entrevistados:

Dr.ª Joana Pereira (Coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Dr.ª Ana Ferreira (Co-coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Dr.ª Madalena Gonçalves (primeira Coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Enf.ª Isabel Alexandre (Enfermeira em funções de chefia e especialista em Saúde Infantil)

Secretária Clínica (SC) Alexandra Macedo 

RESSONÂNCIA: O que motivou a criação da USF Costa do Mar?

Dr.ª Madalena: Enquanto interna do 4º ano na USF da Cova da Piedade, ao acompanhar consultas sem médico, fiquei sensibilizada com a falta de médicos. Senti que era tempo de fazer a diferença numa população carenciada, queria fazer algo diferente e que me desse oportunidade de exercer alguma liderança com autonomia. Juntei alguns colegas de internato e decidimos realizar o projeto de implementação de uma USF, com a ajuda dos nossos formadores de internato.

RESSONÂNCIA: Durante o processo de criação da USF, quais os pontos que considera mais importantes e cruciais para obter a autorização? Quais foram os mais desafiantes?

Dr.ª Madalena:  A criação de uma USF deve ter em conta a sua área de influência e a existência de população carenciada ou utentes sem médico de família. Deve ser elaborado um plano de ação para a implementação da USF, com o apoio e conselho clínico da Direção do ACES correspondente, sendo que considero este item um ponto fulcral para a criação de uma USF. Um dos pontos mais desafiantes foi a cativação e seleção de profissionais de saúde para integrar a nova USF e criar uma motivação suficiente para que o projeto fosse abraçado por todos.

RESSONÂNCIA: Como foi criada a equipa original da USF? Ainda se mantém?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana: Para a criação de uma USF pressupõe-se a escolha dos elementos da equipa. Através de um cálculo foi encontrado o número de profissionais de saúde que deveriam ser afetos à USF Costa do Mar e através de contactos diretos com colegas de internato, foi possível compor a equipa médica. Para a equipa de enfermagem, manteve-se a maior parte dos elementos que trabalhavam na unidade de saúde anterior à USF.

A equipa atual não conta com alguns elementos originalmente escolhidos, porque estes decidiram integrar outros projetos. Os profissionais substituídos foram escolhidos por voto secreto em reunião de conselho geral da USF com pelo menos dois terços dos profissionais. Nos casos em que exista mobilidade de profissionais de e para outras unidades de saúde, a mesma é aprovada por ambas as unidades ou por rescisão de contrato com o profissional.

RESSONÂNCIA: Qual o impacto que a criação da USF Costa do Mar trouxe para a saúde da população da Costa da Caparica?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana:  Embora ainda não existam dados de saúde objetivos, claramente há uma maior acessibilidade à saúde para uma população que era carenciada. No entanto, devido a limites do número de inscritos nas listas de utentes, algumas pessoas ficam desprotegidas. Denotou-se um aumento do número de diagnóstico em determinadas patologias, nomeadamente: cancro da mama, patologia cardiovascular e respiratória, HIV e toxicodependência.

É percetível o passa-a-palavra entre a população, para recorrer aos médicos da USF Costa do Mar.

RESSONÂNCIA: Quais são as perspetivas futuras para a USF Costa do Mar?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana:  a curto prazo: garantir a aplicação prática da homologação em Diário da República da USF Costa do Mar como modelo B; manter a estabilidade da equipa, o que poderá levar a um aumento da performance e uma melhoria de indicadores.

A médio prazo (5 anos): garantir a acreditação da USF, com principal enfoque no reforço do trabalho em equipa, com uma vertente comunitária forte e manter a avaliação dos processos de trabalho com a aplicação de consequentes oportunidades de melhoria.

RESSONÂNCIA: Quais são as mais valias de existir um Enfermeiro de Família na USF?

Enf. ª Isabel: O Enfermeiro de família promove a capacitação da família maximizando o seu potencial de saúde, ajudando todos os seus elementos a serem proactivos no tratamento e manutenção da saúde, nomeadamente:

 a) Desenvolvendo o processo de cuidados em colaboração com a família e estimulando a participação significativa dos seus membros em todas as fases do processo;

 b) Focalizando -se na família como um todo e nos seus membros individualmente e prestando cuidados nas diferentes fases da vida da família;

c) Avaliando e promovendo as intervenções que se mostrem mais adequadas a promover e a facilitar as mudanças no funcionamento familiar, de acordo com as decisões estabelecidas no âmbito da coordenação da equipa multiprofissional.

RESSONÂNCIA: Quais os principais desafios que o Secretário Clínico (SC) enfrenta no seu dia-a-dia?

SC Alexandra: As atividades desempenhadas pelo SC que apresentam maiores desafios, são: a  gestão de reclamações apresentadas pelos utentes; o agendamento de consultas, que por vezes possuem um tempo de espera de algumas semanas e que nem sempre é bem entendido pelos utentes; o atendimento telefónico, que carece de concentração e disponibilidade, e muitas vezes os utentes dirigem-se ao balcão, interrompendo as chamadas; a carência de equipamentos informáticos (impressoras); e  a gestão de conflitos, devido a utentes descontentes.

RESSONÂNCIA: Quais as ferramentas de comunicação existentes na USF Costa do Mar, para que a informação seja veiculada em tempo útil e eficazmente por todos os grupos profissionais?

Para além dos equipamentos de trabalho existentes (telefones, computadores), existem softwares dedicados à comunicação interna e que permitem, em tempo real de consulta, comunicar com os diversos profissionais.

São realizadas reuniões semanais, com todos os elementos ou representantes dos grupos profissionais da USF, onde são debatidos os temas atuais que necessitam de reflexão e onde são transmitidas informações essenciais para o bom desempenho da equipa.

Existe também um placard onde são afixadas informações de forma periódica e que podem ser consultas por todos os profissionais no espaço social.

O ponto de vista do aluno estagiário de Medicina…

A USF Costa do Mar possui uma equipa médica jovem, dinâmica e com um espírito de equipa forte. Enquanto aluno, fui integrado facilmente na equipa, onde me foi dada a oportunidade de participar em todas as atividades do dia-a-dia de um Especialista em Medicina Geral e Familiar. Assisti a consultas abertas e programadas de adultos, doentes crónicos (diabéticos, hipertensos), Saúde Infantil, Saúde Materna e Saúde da Mulher, para além de ter acompanhado vários domicílios. Foi-me permitido também assistir a vários atos de enfermagem (curativos, vacinas, administração de fármacos) e a várias reuniões gerais da USF, o que me permitiu ver o papel do MGF para além da intervenção médica e perceber um pouco melhor a dinâmica de uma USF tipo B.

Apesar da minha experiência em unidades de saúde ser limitada e meramente académica, considero a USF Costa do Mar uma unidade exemplo do que é a USF tipo B…e aguçou o meu desejo em tornar-me Médico de Família.

Texto: Carlos Daniel Santos - 6º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

 

Referências Bibliográficas:

1.          André N. Unidades de Saúde Familiar: o seu papel na reforma dos cuidados de saúde primários. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; 2013.

2.          Entidade Reguladora de Saúde. Estudo sobre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados. 2016. Disponível em https://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/1793/ERS_-_Estudo_USF_e_UCSP_-_final__v.2_.pdf

3.          USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro. [Internet] Disponível em https://www.usf-an.pt/artigos-de-opiniao/a-nova-organizacao-nos-cuidados-de-saude-primarios-os-seus-resultados-e-o-futuro/

4.          Nunes C, Oliveira M. Avaliação de custos-consequências das USF B e UCSP. 2018 [Internet]. Disponível em https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/02/CNCSP-Avalia%C3%A7%C3%A3o_USF-1.pdf

5.          USF-AN. O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2017/2018 [Internet]. Lisboa; 2018. Disponível em: https://app.box.com/s/py3xim1f7g1018oih0q4icgcfhqzkgp4

6.          Ministério da Saúde. Despacho no24101/2007. Diário da República, 2a série, n.o 203 Portugal; 2007 p. 30419.

7.          Lerberghe W, Evans T, Rasanathan K, Mechbal A, Mertens T, Evans D, et al. Primary Health Care, now more than ever. The World Health Report 2008. 2008.

ÂNSIA CRÓNICA | Pisco

Foto de Thomas Willmott.png

Vai começar a Primavera e esta espécie de ave paira por aí, voa e chama amigos.

Dizem que a recruta de Piscos começou lá para dezembro em terras asiáticas.

O bando entretanto fartou-se e migrou para outras bandas.

Eles andam por aí, fechem-se ou não as fronteiras. Talvez até já tenha um pousado no meu ombro e nem o saiba!

Para mim é deveras interessante ver como agora abominamos ter demasiado tempo e ignorar os vizinhos e ter que usar só o telemóvel para comunicar com as nossas pessoas. Esperem. Vou repetir. Nós abominamos o ter demasiado tempo e ignorar os vizinhos e ter que usar só o telemóvel para comunicar com as nossas pessoas.

Faz me refletir imenso sobre a nossa própria postura de sociedade líquida: sociedade contemporânea hiper acelerada e desconectada, onde tudo passa, e que passe rapidamente! Porque há sempre mil e uma coisas melhores de se fazer do que trabalhar e estudar... o aqui e agora é para quem tem tempo… Será?

Estamos a voltar aos mínimos, aos basais, aos essenciais. Ansiamos o contacto físico, a troca de olhares, começamos a querer pôr de parte o ecrã brilhante, outrora tão aliciante! E queremos menos, menos notícias, menos informação, menos tempo livre.

Ando a contar os dias como o Robinson Crusoe, sinto que só agora chegou o inverno. Por outro lado anseio os resquícios positivos que esta clausura deixará. Agora todos os meus almoços são em família. Agora todos os dias tentamos discutir um filme que vimos ou um livro que lemos. Forçamo-nos a comunicar sobre coisas triviais até que até isso se torne trivial.

De manhã acordo, incomodo-me com o silêncio dos vizinhos, levanto-me e visto a roupa “normal”, a roupa da rua. Antes da videoconferência ainda vou buscar o gatinho velhinho e deixo-o a meu lado, ele, que nao entende nada destas mudanças é quem mais me acalma, ele nem se questiona, só fecha os olhos, faz uns tremeliques de ternura e adormece no embalo.

E quando os Piscos partirem? Como seremos nós? Quem seremos nós?

Texto: Beatriz Aranha Martins - 5º ano

Ilustração: Felipe Bezerra- 3º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Amor em tempos de quarentena

Foto de Crawford Jolly.png

A vida era uma linha em imperfeito contínuo até esta pandemia nos deixar em suspenso.

Faculdade, amigos, casa. Faculdade, amigos, casa.

Casa, casa, casa. Casa, casa, casa.

Vivemos relações à distância sem que ninguém, nem o tempo, nos tenha preparado para tal.

Creio que é este ponto que mais me atormenta.

É tão difícil amar em tempos de quarentena.

Digo-o porque não sei onde o teu amor está.

Não te vejo, não te sinto, não te toco. 

Que tormentos habitam a tua mente?

Viver sem amor é a pior forma de viver.

As ruas desertas são o filme de um mundo pós-apocalíptico.

As vidas paradas, isoladas, moribundas. 

O medo de sair, o medo de morrer. 

Viver com medo é a pior forma de viver.

Distanciamento social ou insanidade mental? 

Estas paredes causam-me pânico.

Paredes da incerteza do futuro. 

Viver na incerteza é a pior forma de viver. 

É tão difícil amar(me) em tempos de quarentena.

Autor: Anónimo 

Ilustração: Felipe Bezerra -3º ano

LER PARA CRER | Cinema Noir

CinemaNoir - Foto de Jeremy Yap.png

I

Tela preta. Luzes acesas. O que será ali projetado? Ninguém sabe, pois nas cadeiras pretas e almofadadas da sala da Sétima Arte não está vivalma. E é uma pena realmente nenhum par de olhos conseguir receber os raios luminosos que se refletem vindos das luzes de presença nas cadeiras vermelhas da melhor pele, com apoios em mogno encerado e com números de identificação dos lugares, em caligrafia cuidada. Ladeando de ambos os lados das filas estes luxuosos cadeirões, estão escadarias com degraus de madeira de rebordos dourados. Ao fundo da sala, na parede mais posterior, no seu exato centro geométrico, um foco; peritos diriam que seria, naturalmente, o ponto de contacto com a famigerada sala do projetor. 

Esta sala está igualmente, vazia de gente, mas muito menos luxuosa: simples quatro paredes, um teto e um chão, um projetor inserido na parede anterior, antiquado, duas bobines, condensador, lâmpada interna e respetivo obturador, tudo terminando numa simples lente, onde se afigurarão obras, a partir da sua transfiguração da fita para luz que embate instantaneamente na tela. Tem também uma mesa onde assenta o projetor e uma porta por onde entraria um funcionário incumbido da tarefa de ativar o aparelho que faria o serão de muita gente. 

Voltando ao ponto de luz, dir-se-ia que embora aceso, nada estaria a projetar na tela, ainda preta. Seria luz vinda da sala do projetor, com a porta deixada aberta pelo projetista? A porta estava trancada, a sala vazia de gente e o projetor desligado. Apenas uma lâmpada no teto da singela sala estava acesa, acompanhando as luzes de presença da grande sala da tela. Tudo estava neste conjunto de salas contíguas num estado de vazia Latência. Algo estaria para acontecer, ninguém sabia o quê. Talvez, o soubesse se a Existência fosse permitida em todo este cenário.



II

Passos secos num chão de madeira que seria milhares de vezes pisado por criaturas bípedes, estranhos seres que certamente se sentariam naqueles cadeirões de pele, depois de pagar por um papelinho enunciando o que iriam testemunhar quando a tela resolvesse ficar com outra cor que não negra. 

Passos aproximam-se da dita sala, ecoando pelo simples corredor que levava à tela, a estrela principal. Passos produzidos por sapatos Oxford pretos calçados por uma figura que se aproximava, atrás do eco dos seus passos. Mais passos dados, mais se via o seu perfil: um chapéu fedora castanho, ornamentando uma cabeça indefinida na sua totalidade, exceto nos lábios de um vermelho negro uniforme, dir-se-ia que o seu único propósito era ser o poiso de uma cigarrilha única, inapagável até ao Fim; óculos tartaruga assentes num nariz e orelhas que se confundiam com o ar lúgubre do corredor, apenas ornamentado por estandartes para cartazes vazios. Tinha ainda num bolso, ladeando a lapela pontiaguda do casaco, um lenço branco clássico, escondendo uma cigarreira vazia; um fato, de corte inglês impecável com cor azul escura; uma camisa de colarinho engomado, que obrigava ao uso de botões de punho, estes de prata polida; uma gravata fina e preta, tão negra quanto a tela da sala, o destino daquele ser que em si encerrava toda a Existência. Pelo menos até que o Fim chegasse...



III

O Espetro não fantasmagórico, elegantemente vestido, avança acompanhado do seu eco, a passos vagarosos, mas determinados em direção à tela ainda negra, ainda vazia. Não está impaciente, mas sente a latência no ar daquela sala que está prestes a visitar. Não tinha bilhete, não precisava de tal coisa, Tudo lhe pertencia; nos braços, apenas uma gabardine trench-coat bege obtida numa qualquer rua cosmopolita, com lojas dos melhores produtos para cavalheiros. Uma rua ainda por batizar, por quem viria a seguir. 

O Espetro estava já ao pé da porta da sala do projetor. Com a cigarrilha na boca e inalando o seu fumo, que desaparece nos seus lábios para nunca mais de lá sair, estala dois dedos numa mão, que parecia não existir antes de ele querer estalá-los. Simultaneamente ao som produzido pelo embate digital, a porta destranca-se, mantendo-se fechada e a lâmpada no teto apaga-se. Ele não gostava de desperdiçar o seu dom, inesgotável até ver, em coisas desnecessárias. Era económico na demonstração do seu poder, que ditava o que era e o que não era. Neste momento, a sala e a tela existiam porque ele assim deliberou. Entra na sala da tela, o corredor esfuma-se, desta feita sem estalar de dedos; já tinha cumprido o seu propósito, tal como quase tudo criado pelo ser magnânimo, que ali tinha chegado, finalmente.

A latência estava prestes a atingir o seu limite máximo, sentia-se no ar da sala luxuosa. Agora a sala não estava mais vazia. Os seus lábios movimentam-se coordenadamente, deste movimento quase nasce um sorriso, que serve apenas para albergar uma vez mais a perene cigarrilha, um cilindro de tabaco enrolado sempre aceso, castanho e fino, elegante e simples, como muito do que criara e tudo o que possuía. Deste objeto, nenhum malefício o afetava, visto que sofrer era algo que lhe estava interdito; tal como o sentimento e a emoção, estas eram coisas por ele criadas, mas não utilizadas. Porém, se esta se apagasse, ele apagar-se-ia também, na derradeira resolução daquela latência que ele já não podia ignorar. E toda esta urgência estava concentrada naquela tela, negra como tudo e como nada. 

Entrava no vestíbulo da grande sala, um retângulo todo ele de veludo vermelho vivo iluminado por quatro apliques de forte intensidade dispostos dois a dois nas paredes opostas da divisão; apagar-se-iam quando a tela mudasse de estado.

Saiu do vestíbulo e viu-se cercado pela luz de presença e pela negritude da tela. Leva a cigarrilha à boca uma outra vez, atentos contariam pela terceira, atentos estes que não existiam. Pensa que não mais andará; limitar-se-á a assistir à projeção iminente.



IV

A ditadura do Vazio de Existência estava prestes a chegar ao fim, era essa a latência premente detetada pelo Espetro. 

A cigarrilha estava outra vez nos seus lábios. Não lhe restava muito mais para fazer: vestira aquele fato que nunca se sujava, transitara por todo o lado; era omnipresente (Tempo e Espaço eram algo que se curvava ao seu estalar de dedos). Omnipotente como era, limitara-se a existir, a criar espaços onde os seus passos pudessem ecoar como a rua de lojas onde adquirira o seu figurino, como o corredor por onde passara, a sala do projetor e a sala que albergava a belíssima tela negra como o Cosmos, de que era o Dono.

Ele tinha criado tudo, uma totalidade de ideias, ambientes, substâncias, misturas, que iria albergar todos os que viessem a existir; deixara plantadas sementes de algo que viria a ser único, diferente dele próprio, algo vivo, finito, que sofria, que penava, que respirava, que iria evoluir, que iria nascer, sentir, destruir, remediar, morrer e nascer outra vez. Decidiu deixar um espaço limitado de criação nas mentes daqueles que viriam, um pequeno quadro branco por preencher em conjunto com maior parte dos conceitos pré-definidos plantados por Ele. Era um fardo pesado, o de criar; não obstante, decidiu limita-lo a uma espécie de seres que dominariam as suas criações. Inseriu nas ideias que teriam algo que iria contaminar superfícies como a sua tela negra, um espelho do futuro de tudo o que criara: criatividade aliada à imaginação, uma parte da sua própria substância, limitada pelo chapéu, fato, óculos. 

Estala outra vez os dedos: aparece de imediato sentado na cadeira mais central de toda a sala; o Espaço não lhe impunha fronteiras, era-lhe obediente. Ao mesmo tempo que se teletransporta, o projetor na sala atrás ativa-se sem qualquer intervenção manual. Inicia-se um barulho cadente e repetitivo das bobinas a rodar e a fazer projetar uma película que continha as imagens pelas quais o Espetro esperou apaticamente durante todo o seu labor interminável. As luzes apagam-se, a derradeira sessão iria começar; a latência, cada vez mais ardente, terminaria finalmente...

Leva a cigarrilha à boca e inala o seu doce e agreste fumo mais uma vez; estala os dedos uma derradeira vez e a tela acende-se: passa imagens de toda a Criação, da formação de universos e seus elementos, de Energia, galáxias, planetas organizados em sistemas. Viu que apareceria Vida nesses planetas, dar-se-ia de seguida a evolução da mesma. Assistiu, assim, ao nascimento da espécie de seres sua predileta, a quem cedera a sua substância, parte do seu poder de Criação. Seria uma espécie todo-poderosa, que atingiria um tal estatuto que moldaria, mal e bem, todo o planeta que Ele preparara para os ditos seres, que fabricariam, depois de milhares de anos, aparelhos como o projetor da sua Sala, telas parecidas com a sua Tela, Salas como a sua, Roupas como as suas, cigarrilhas semelhantes à sua e projeções como as que se lhe afiguravam aos óculos que usava. Quase que os sentia rindo e chorando com as películas a que assistiriam. Iriam fazer coisas para além daquele Cinema, fariam descobertas científicas, explorariam todas as Suas criações com a resiliência e a inteligência só detida pelos chegam ao Pináculo da Evolução. Sentiriam, amariam, odiariam, matariam, sofreriam tal como ele nunca o conseguiria fazer...

Vê todas as imagens até ao fim, uma conclusão caduca e indefinida que seria moldada pela forma como os seus filhos usariam o poder que Ele lhes dera. Impassível e sempre apático na sua cadeira, vê todos os outcomes possíveis: desde a glória imortal à extinção dolorosa. Leva a cigarrilha aos lábios uma última vez, pensando que acabara o seu trabalho e passaria toda a responsabilidade para essa espécie que viria. Quando acaba de inalar o fumo, a cigarrilha apaga-se. Com ela, apaga-se também a Sala, o projetor e tudo em seu redor; restam apenas a sua tela e Ele próprio. As suas roupas desaparecem e os seus lábios. Todo ele se torna fumo, que é consumido vorazmente pela Tela que passa a ser o ponto de partida de tudo o que Ele arquitetara, a singularidade a partir da qual despoletaria o seu Projeto. Num processo vertiginoso, violento e permanente, a Tela assume tudo e a latência atinge um expoente máximo, dando-se uma contração perigosa e potente, uma compressão de tudo e de nada, num fundo negro próprio do que está prestes a existir. 

Num instante, tudo se modifica numa explosão que continha em si um Fim e o Início, uma singularidade a que os humanos chamaram passados milhares de milhões de anos o Big Bang. Ainda desconhecem a entidade que despoletou tudo isso e, inquietos por esse mistério e desejando resfriar essa inquietação, chamaram-lhe Deus, sem fato nem óculos, sem forma, um Espírito Santo, utilizando o poder do Espetro para tentar entender a sua própria existência...Em vão? 

Poderá ser esse o caso, mas de qualquer forma, inconsciente ou não, lá criaram algures uma sala muito parecida com a descrita, com uma simples tela branca, onde se projetam grandes obras cinematográficas, frutos de grandes pensamentos, resultado da dádiva mais valiosa da Humanidade: a sua criatividade, aliada à inteligência e à imaginação. Pelo menos, ali naquela sala, parecida à sua, o nosso antecedente ancestral estaria orgulhoso, se alguma vez ele sentisse como nós sentimos.


Diogo Cunha, 28 de março de 2020 (em quarentena, esforço de sair do confinamento metafísica e não fisicamente, há que respeitar o isolamento social...)


Texto: Diogo Cunha - 2º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

BULA MEDICINAL | A necessidade do cinema

A necessidade do cinema

“Talvez a grande função da arte seja dignificar o Homem e talvez seja o triunfo sobre o sofrimento, a dor, a morte.”

- António Lobo Antunes, em entrevista a A. L. Coelho

I.

     Quando leio um livro, não quero senão que ele me cause inquietação. Que me perturbe, que me deixe a pensar. No fundo, quero que o livro me faça questionar aquilo que tenho por garantido. O mesmo se aplica às outras artes. Como posso permanecer impassível depois de ter lido o Ensaio sobre a Cegueira? Ou de ter admirado a ginástica angustiante das pinturas de Dalí?

     O cinema chega, hoje em dia, muito mais facilmente ao grande público do que as outras formas de arte – e, contudo, parece que o cinema (e cada vez mais as séries televisivas) têm uma espécie de função “anestesiante”, isto é, de permitir às pessoas imergir-se neles e, momentaneamente, esquecer tudo o resto (trabalho, família, sociedade...).Vai-se ao cinema “desligar-se” do mundo por algumas horas e depois… Acabou, volta-se à realidade (independentemente do que este fluido termo queira significar). O cinema e a televisão ganharam, assim, uma dimensão “alienante”, no sentido em que alienam, afastam os seres humanos das realidades mais próximas. 

     Segundo Clement Greenberg, no seu pioneiro ensaio Vanguarda e Kitsch (1939), no final do século XIX, devido à industrialização e consequente migração maciça para os centros urbanos, apareceu uma classe intermédia, citadina, culturalmente algures entre o campesinato e as elites: isto levou ao surgimento de um tipo de arte e entretenimento para as massas, denominado kitsch, que é “arte” produzida para as massas, até aplicando as mesmas técnicas que permitiram a industrialização. Pintura, mobília, estatuária, música, teatro e, depois, o cinema, produzidos en masse com o objetivo de entretenimento rápido e lucro, em detrimento das formas estéticas artesanais. O kitsch é a falsificação da arte, porque é um produto do consumismo (1). Ainda segundo Greenberg, os artistas tradicionais, no ensejo de se afastarem do kitsch, que ganhava terreno, reagiram com a criação das vanguardas do século XX. Neste sentido, o cinema atual ainda é vítima do kitsch, representado pelas grandes produtoras, que enchem as salas de projeção com películas ocas, vazias de verdadeiro conteúdo, mas, obviamente, grandes sucessos de bilheteira.

      Ora, a alienação (Entfremdung é o termo alemão utilizado em teoria social) dos espectadores é extremamente útil para as formas de poder – um povo constituído por indivíduos alienados através de entretenimento vazio de conteúdo ético e intelectual é um povo fácil de controlar: a fórmula imperial de “pão e circo” é o epítome disto.

     Porém, foi sempre assim?... Com o teatro, antigamente, já era deste modo? Segundo o filósofo italiano Giorgio Colli, os gregos antigos iam ao teatro exatamente para encontrar a realidade: “Estamos rodeados pelo espetáculo, tudo hoje é espetáculo, e não apenas o teatro, o cinema, a televisão. Hoje também os homens de ação olham mais do que agem. Por essa razão ficamos aterrorizados quando alguém consegue revelar o que foi a tragédia grega. De súbito percebemos que aquilo não era unicamente um ver, que aquele espetáculo era a essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objetos que acreditávamos serem reais (2).”

     Ligado ao culto do deus Diónisos, o teatro ateniense estava impregnado de uma forte componente ritual e religiosa. Dois ou três atores interpretavam os grandes mitos helénicos, cujos protagonistas, varões e mulheres de carácter excepcional, enfrentavam as consequências do seu orgulho desmedido (hubris) e a vontade inexorável do destino (ananke), acompanhados de um coro que cantava e declamava desde a orquestra (3).

     “O distanciar-se da vida é de tal modo inicial que se confunde com a própria vida. Por conseguinte a sensação moderna «isto é apenas um espetáculo» é o inverso da emoção da tragédia grega (…) que fazia dizer «esta é apenas a realidade quotidiana.» (…) O espectador da tragédia grega vinha e “conhecia” qualquer coisa mais acerca da natureza da vida, (…) (2).”

     Todavia, a tragédia como os antigos e modernos conheceram praticamente morreu. Parte dela transitou para outra forma dramática, o filme. O cinema é per se poético, como foi o teatro, no sentido da palavra grega poiesis, “criação” – a tessitura de um texto e de uma ação contidos em si, habilmente fabricados com a perícia de um artesão. 

     O objetivo do presente ensaio é apresentar e comentar dois filmes (revelando minimamente o seu enredo, apenas um aperitivo), pouco conhecidos do grande público, mas que atingem aquele almejado objetivo de dizer “isto é a vida, é assim; vinde saciar-vos desta verdade nua.”

II.

     O Sacrifício (1986) foi o último filme do realizador russo Andrei Tarkovsky e trata-se de uma produção franco-sueca. O argumento é enganadoramente simples: numa casa isolada no interior rural da Suécia, família e amigos reúnem-se para celebrar o 56º aniversário de Alexander, crítico literário e antigo ator. A meio da festa ouvem-se os ruídos ensurdecedores de aviões militares e mísseis, de seguida as notícias anunciam o começo de uma nova guerra mundial e o ataque em massa com armas nucleares. As personagens entram em desespero, os seus demónios interiores libertam-se, infunde-se o pânico.

     «Esperei por isto toda a vida», murmura para si mesmo o protagonista. E no meio da angústia e da confusão, Alexander reza e tenta negociar com Deus: em troca da salvação da Humanidade por intervenção divina, Alexander abdicaria de tudo aquilo que lhe era mais querido: a sua família, a sua casa, e até se compromete a um voto de silêncio eterno.

     Tendo em conta a época em que o filme foi produzido, a ideia de um apocalipse nuclear estava bem presente na mente das pessoas. Mas o foco da narrativa vai para a psicologia individual das personagens e o modo como lidam com a situação. Os temas de sofrimento, redenção e a procura do transcendente, bem como a fina análise psicológica fazem que esta obra lembre um pouco o estilo narrativo do romancista russo Tolstói.

     O realizador emprega longas sequências de grandes planos, em que, por vezes, parece que os atores são secundários às paisagens. O passo lento do filme, combinado com o minimalismo dos cenários dá quase a sensação de uma sequência onírica. A banda sonora também em si minimalista, restringindo-se a duas peças musicais apenas: uma melodia encantatória, ininteligível, e a Paixão segundo S. Mateus, de Bach. Esta última, para além da sua beleza inerente e dramática, encontra-se relacionada tematicamente com o argumento: o oratório de Bach relata o magno sacrifício de Cristo para a salvação da Humanidade.

     Estão presentes temas filosóficos variados, como a ideia do “eterno retorno.” O enredo prima pela ambiguidade, podemos interpretar a narrativa de diferentes modos. Aos poucos vamos descobrindo que a vida familiar de Alexander não é assim tão idílica, que a sua esposa está arrependida de se ter casado com ele e que mantém uma relação com o médico da família. Da mesma maneira, com a afirmação do protagonista, «Esperei por isto toda a vida», podemos questionar pelo que é que ele esperou que acontecesse: a guerra nuclear? O fim da absurda fachada social da sua vida? Outra coisa, então?

     Encontra-se uma forte crítica ao progresso tecnológico – não nos tornou mais felizes, pelo contrário colocou-nos mais perto da alienação e da desumanização. Foi o progresso tecnológico e industrial exacerbado que permitiu as duas guerras mundiais e as alterações climáticas; e, agora, as realidades virtuais afastam-nos cada vez mais profundamente.

     Tudo isto é posto em cena por atuações soberbas e fotografia impecável e não é por acaso – a equipa que produziu esta fita era a que colaborava com Ingmar Bergman. Vejo este filme como um testamento ético e estético deixado por Tarkovsky à Humanidade.

III.

     Tangerinas (2015), de Zaza Urushadze, produção estónia-georgiana, foi nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro no ano em que saiu. É estética e narrativamente mais simples que o filme anterior. Talvez exatamente pela sua simplicidade seja ainda mais cativante.

     Passa-se em 1992, no Cáucaso, quando se iniciaram movimentos independentistas que culminaram no fim da União Soviética, resultando em tensão étnica entre georgianos e abcásios e consequente guerra civil. Dois camponeses decidem permanecer na Geórgia, nas suas remotas e rurais propriedades, durante o tempo suficiente para terminar a colheita de tangerinas. Um deles, Ivo, após um combate frente à sua casa, acaba por resgatar os dois sobreviventes, um soldado georgiano e um mercenário checheno. Feridos, Ivo cuida deles e impõe a estes dois inimigos, Nika e Ahmed, uma trégua enquanto estiverem sob o seu teto, embora jurem que irão matar-se um ao outro mal estejam recuperados. 

     A câmara desliza suavemente pelas paisagens montanhosas da Geórgia, pelo pomar e pela rústica casa de Ivo, com subtis contrastes de luz e sombra. As personagens são cuidadosamente estudadas, não são meras figuras de cartão que se movem ao som de vagas ideias, mas sim pessoas iguais a nós, com vontades, medos, contradições, apanhadas a meio de algo que não conseguem controlar.

     Inteligente, poderoso e profundamente humano nas suas atuações, também com uma preocupação minimalista e uma maravilhosa banda sonora, Tangerinas é já um clássico. 

IV.

     Talvez aquilo que nos verdadeiramente distingue dos animais seja o facto de o Homem contar histórias. E de ter o profundo desejo de ouvir contar histórias, para se compreender a si mesmo e ao mundo. 

     A arte é aquilo que nos humaniza, que nos relembra quem somos; é um grande “conhece-te a ti mesmo.” De certa maneira aproxima as pessoas independentemente do país ou da época. As narrativas que os bons filmes nos contam ajudam-nos a encontrar a nossa humanidade, são uma afirmação da nossa humanidade comum e, voltando à epígrafe deste texto, talvez, por isso mesmo, sejam uma vitória sobre o sofrimento, o olvido e a morte.

     Neste sentido, o cinema é essencial e necessário

Lisboa, 15-01-20

Texto: João Almeida - 1º ano

Bibliografia:

  1. Greenberg C. Vanguarda e Kitsch – Ensaios Escolhidos. Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa; 2019.

  2. Colli G. Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d’Água; 2000.

  3. Aristóteles. Poética (tradução do grego com introdução e índices por Eudoro de Sousa). 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores; 1964.

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Carta a vós, amigos!

carta a vós, amigos.jpg

Carta a vós, amigos! 

Acho não saber ser

Porque creio na emoção

Até adoecer.

Custa tanto ao coração

Lidar com esta timidez

Que só sai quando me lês...

E eis a história vivida

De uma altura perdida

Onde trazia porquês.

Assim foi uma vez

E podias ter sido tu.

Pensei no futuro este mês

E isto continuava tão cru

Com a minha complicada

Maneira de falar.

Não deixo a questão arrumada

Que me incomoda sem cessar.

Acho que é devaneio de perfeição!

Olha, só me resta pedir perdão...

Amizade é prá vida...

Mais um clichê dito!

Mas foste mesmo querida,

Oh emoção que aqui grito!

Por isso quero levar-te comigo

Para todo lado,

P'ró futuro perigo

Mesmo em silêncio forçado.

Agora sei que não ligo

E magoo-me em te conhecer

Mas ao recordar o passado

Sei que tudo irei reler...

Voltará essa memória boa

Dos dias loucos em Lisboa!

E perderemos mais anos,

Meu eterno amigo!

Pois com todos estes danos

Amanhã estarei contigo.

Autor: Catarina Monteiro - 4°ano

Ilustração: Tânia Clemente - 4°ano

FEIRA SOLIDÁRIA | O Sonho

Tiago Fernandes 5° ano.jpg

Se tu soubesses as vezes

que fechei os olhos

e desejei não estar onde estou

quantas vezes sonhei,

ouvir-te cantar

como as Sereias

aquelas que encantavam os navegadores

e os levavam até ao fundo do poço

Ouvi histórias sobre pessoas

que atravessavam o oceano

usando apenas a tábua do Titanic,

Mães e Pais

que cruzavam perigosos mares

engolindo pequenos goles de água 

trazendo consigo

nada mais, nada menos

que pequenos latidos de socorro

nas suas já fracas cordas vocais

No meio da imensidão de corpos

aqueles que resistem,

são meramente enjaulados

em decrépitos cubículos

sem uma palavra, sem um gesto

apenas os rostos de sua família

se salvaram

na sua imaginação

e os gritos silenciosos

de fome

da sua família

a consumi-los

Qu'est-ce que je fais ici 

اريد الذهاب للبيت*

can i go please

Lütfen bana yardım et *

As palavras nas mais diversas línguas

ecoam na penumbra

como efémeras bolas de sabão

A dor e sofrimento, presos

nas suas secas gargantas

sem alimento

sem boas novas

sem esperança

o verdadeiro espartilho da alma

Fechei os olhos de novo

Senti a brisa da noite quente

Naquela em que dançávamos ao luar

e tu, quase sem saberes

quase sem te dares conta

me fazias sorrir, assim

como se eu fosse ainda criança

a abrir os presentes,

que nunca tive

Aí, peguei num lápis que não tinha

num talento que não possuía

numa tela que eu encarnava

e desenhei-te, 1001 vezes

pelas 1001 noites...

e quando acordei,

 tudo não passava de um sonho

de um sonho do lusco fusco...

*árabe e curdo, respectivamente (quatro linguas da quadra são as mais faladas pelos refugiados)

Texto: António Lopez - 2ºano

Ilustração: Tiago Fernandes - 5ºano

FEIRA SOLIDÁRIA | Travessia

Tânia Clemente 4o ano.jpeg

À minha volta só há mar

E o mundo é bonito, 

Um universo cheio de possibilidades 

E um sem-fim de lugares 

Para explorar.

à minha volta só há mar 

e o mundo assusta-me,

a mais pequena oscilação deste barco pode ser a última,

só tenho um sítio para onde ir e mesmo lá

não sei como me receberão.

Nesta grande embarcação, 

Os meus filhos saltam e riem de alegria,

Já fizeram amigos novos

De todos os continentes do globo,

Cada um com expressões e maneirismos diferentes,

Mas temos espaço só para nós, 

Uma sala de espetáculos, 

Uma piscina de água limpa

E uma multidão de sorrisos prestáveis. 

quase não me consigo mexer

entre tantos corpos suados e magoados 

não reconheço nenhuma destas caras 

mas conheço toda a gente 

pois todos têm aquela expressão na cara 

igual à minha 

infeliz, 

sem esperança 

e de quem já sobreviveu alguém.

Em breve chegaremos a casa 

Desta viagem de verão em família 

Com pele bronzeada, 

Areia nas sandálias

E recordações para todos 

Os que nos esperam, 

Os miúdos já sentem falta dos avós 

E de todos os animais de estimação.

tenho saudades dos meus pais, 

sei que não os vou voltar a ver. 

aperto a mão do meu irmão de 6 anos 

e penso com força num desejo de aniversário: 

que tudo corra bem e daqui a uns anos 

ele não se lembre de nada 

ou então acredite que tudo não passou 

de um sonho mau perdido no meio de memórias felizes.

A viagem de regresso

Está a ser calma e monótona 

A luz do sol anima tudo ainda mais

E acenamos felizes aos passageiros

Do outro cruzeiro em sentido contrário. 

a viagem é traiçoeira 

nunca sabemos o que esperar

lá fora está escuro, 

mas assim é melhor, 

pode ser que não suspeitem do nosso barco.



Agora que estas semanas 

Chegam ao fim, 

Sei que aquilo de que 

Vou ter mais saudades

É o barulho das gaivotas 

Que me acordavam de manhã.

esta travessia parece 

nunca mais ter fim, 

mas se algum dia acabar 

não vou ter saudades de nada 

principalmente dos gritos 

que tantas vezes me acordavam de manhã.




Autor: Inês Costa Louro -3º ano

                        Ilustração: Tânia Clemente 4°ano

FEIRA SOLIDÁRIA | Liberdade ou morte - Uma viagem pelo Curdistão

Ricardo Sá Pereira 5º ano.jpg

Afinal quem são os Curdos? Ora bem os curdos são um grupo étnico do médio oriente composto por cerca de 30 milhões de indivíduos distribuídos pela Turquia, a Síria, o Iraque, e o Irão. Tem a sua própria língua e religião, e também um forte sentido de identidade cultural que lhes trouxe muitos problemas nos últimos 100 anos. Como os países onde eles habitam não querem perder controlo das zonas curdas, têm recorrido a todo o tipo de meios para esmagar o seu direito à autodeterminação. Deixarei aqui um relato do que este povo tem sofrido ao longo dos anos, e irei também deixar alguns pensamentos sobre o recente movimento de emancipação da mulher curda no norte da Síria. 

A primeira paragem nesta viagem histórica é a Turquia. Aqui habitam mais curdos do que em qualquer outro país do mundo, mas isso não impediu o governo de Ataturk (o primeiro presidente da Turquia) de os tentar exterminar. Em 1937 o exército levou a cabo o Massacre de Dersim fuzilando milhares de homens, mulheres e crianças curdas¹. Uma limpeza étnica ao estilo dos genocídios de arménios e gregos que se deram 20 anos antes.  Mas as perseguições e assassinatos continuaram pelo séc. XX adentro, até que um grupo de curdos formou o PKK (Partido de Trabalhadores do Curdistão) e iniciaram uma rebelião em 1984, exigindo independência e direitos políticos. Este conflito só terminou em 1999 com um cessar fogo unilateral do PKK, desistiram da luta armada para mais autonomia e liberdade politica². Infelizmente em 2015 o ditador turco Erdogan voltou a reatar as hostilidades, por motivos eleitoralistas. Nada como uma guerra sem sentido para gerar união nacional. Convém dizer que esta guerra levou a centenas de milhares de mortos, e imensas vilas curdas foram simplesmente apagadas do mapa.  Foram usados bombardeamentos aéreos, tanques e buldózeres para demolir cidades como aconteceu ao centro histórico de Diyarbakir em 2015³. Foram construídas barragens no Eufrates com o único propósito de inundar as terras ancestrais curdas como vimos em 2020 com a inundação de Hasankeyf uma cidade curda com 12 mil anos de história

Quero também informar o leitor que a língua curda não podia ser ensinada nas escolas e os partidos políticos assim como os jornais curdos eram proibidos. E ainda hoje milhares de jornalistas, artistas, escritores, professores e estudantes universitários estão presos por simplesmente pedirem um cessar fogo nesta guerra contra os curdos. A Human Rights Watch revela como basta um tweet pacifista, para que a justiça turca acuse os cidadãos de propaganda terrorista e os condenar a anos de prisão. A gradual transformação da Turquia numa ditadura não só tem impacto nos culpados dos costume, os curdos,  como afeta já todos os defensores da liberdade de expressão de forma implacável.         

Agora vamos viajar para o Iraque. Toda a gente conhece o terrível ditador Saddam Hussein, mas nos anos 80 ele era o menino bonito dos Estados Unidos da América, porque estava em guerra com o Irão. Nesta altura Saddam queria um Iraque forte, uniforme, e tendencialmente arabizado, então simplesmente decidiu cometer genocídio das minorias não árabes. Durante a infame Campanha Anfal em 1986, usou armas químicas e pelotões de fuzilamento para matar mais de 150 mil civis curdos no norte do Iraque. Quantas crianças ainda nascem nas montanhas Zagros com deficiências terríveis por causa destas hediondas façanhas? É curioso que os americanos tenham continuado a apoiar Saddam Hussein mesmo sabendo destas atrocidades.

 A verdade é que felizmente em 2004 foi criada a região autónoma do Curdistão Iraquiano com capital em Erbil, tendo assim nascido pela primeira vez uma terra onde os curdos podiam chamar casa.    

Na Síria o drama é mais recente, até porque é um país que antes da guerra se orgulhava de ser multi-étnico e multi-religioso. Apesar disso cerca de 300 mil curdos sírios não tinham direito a cidadania. Quando a guerra eclodiu em 2011 as forças do ditador Bashar Al Assad abandonaram o norte do país à sua sorte para irem combater os rebeldes noutras regiões da Síria. Então os curdos organizaram-se democraticamente e criaram uma confederação independente de cidades, a Federação do Norte da Síria. Em 2014, como resposta à barbárie e à misoginia pregada e praticada pelo Estado Islâmico as mulheres curdas criaram as YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) uma brigada composta apenas por mulheres. Estas tornaram-se numa formidável força de intervenção feminista que combate o patriarcado dentro e fora do campo de batalha. A verdade é que no Curdistão Sírio, também conhecido como Rojava, começaram a ser plantadas ideias muito interessantes e únicas na região. Enquanto que os rebeldes sírios se deixaram infiltrar por radicalismos religiosos, e perderam completamente o fio à meada da revolução, em Rojava uma verdadeira revolução feminista e democrática estava a nascer pronta para abalar todos as divisões sociais vigentes até então no médio oriente. Homens e mulheres, curdos, árabes e assírios, muçulmanos e cristãos, todos iriam construir juntos esta nova sociedade. A poligamia tão frequente nas comunidades tribais, foi abolida, assim como o casamento infantil. Todas as vilas e cidades teriam dois governantes um homem e uma mulher. Nas escolas os rapazes e as raparigas teriam aulas sobre feminismo e direitos humanos. No exército, homens e mulheres combateram lado a lado para derrotar completamente o Estado Islâmico¹⁰. Esta interessante experiência social nasceu e sobreviveu rodeada de inimigos, a Turquia, o governo Sírio, e o Estado Islâmico, sempre a ameaçar a sua destruição. Mas infelizmente o ditado popular dita que tudo o que é bom encontrará algum dia a sua finitude, e assim foi. 

A Turquia, velha inimiga da causa curda, nunca iria permitir que Rojava prosperasse ali tão perto, pois temia a exaltação de movimentos nacionalistas curdos dentro das suas fronteiras. Então o ditador Erdogan, não se contentando a matar curdos dentro do seu próprio país, decidiu também matar os curdos na Síria. Em 2016, 2017 e novamente em 2019 o exército turco aliado a mercenários rebeldes islamitas iniciou a invasão e o bombardeamento de Rojava¹¹. Escusado será dizer que morreram milhares de curdos que nunca tinham feito nenhum mal à Turquia, tirando o facto de existirem e serem curdos. Escusado será dizer que os curdos foram expulsos das suas aldeias e que famílias árabes ocupam agora as suas casas. Escusado será dizer que os invasores impuseram a lei islâmica nos territórios conquistados, contrariando todos os progressos sociais alcançados por Rojava¹². Tudo isto faz lembrar a arabização e o genocídio de curdos que o Saddam levou a cabo no Iraque, mas desta vez nós estamos diretamente envolvidos. Porque a Turquia faz parte da NATO, o seu exército é equipado por todos nós, e são essas armas que estão a concretizar a actual limpeza étnica no Norte da Síria¹³ ¹⁴.

Agora que estão apresentados os factos promovo algumas s reflexões. Se os curdos deram a sua vida para que o mundo não tivesse mais de enfrentar o flagelo terrorista, porque é que são os países europeus, que sofreram de atentados terroristas, que fornecem à Turquia as armas para concretizar a sua guerra contra os curdos? Não será um pouco hipócrita e paradoxal dizer que se é contra o terrorismo, mas depois ajudar a matar aqueles que o combatem? Mas se depois acontece um atentado na Europa, a culpa não é nossa, choram-se lágrimas de crocodilo e chamam-se os analistas para analisar a situação, mas ninguém pede que se chamem as grandes empresas de armamento para pararem de vender armas a ditadores. Ninguém liga ao Erdogan para lhe dizer, “olha a tua guerra contra os curdos está a ajudar os terroristas a ganhar terreno podes parar um bocadinho com essa brincadeira”. E se estamos sempre a falar de direitos humanos e igualdade de género porque é que deixamos que Rojava fosse invadida? O único lugar no médio oriente onde há verdadeiramente igualdade entre homens e mulheres. Os curdos não já sofreram o suficiente? Ou ainda tem de ser esfaqueados nas costas com a nossa hipocrisia? 

O sol nasce e renasce e os dias passam no ocidente com o mesmo torpor ignorante de sempre. Que nos importa que os curdos morram em nome da liberdade? Foram notícia um dia, desapareceram, foram esquecidos. O que importa é ir à loja, comprar uma televisão maior para ver tudo com mais detalhe desde que não seja demasiado realista. O que importa é nem sequer votar, ou votar em quem só defende os seus interesses. O que importa é o défice, a dívida, a bolsa de valores sem valores nenhuns e a economia. E depois vamos ser condescendentes a achar que somos salvadores, mas na verdade bastava-nos não ser cúmplices de assassinos, não apertar a mão a ditadores e opressores, não vender a alma a esses diabos. 

Tudo está interligado, um tanque produzido na Alemanha, acaba na Turquia a matar curdos, uma bomba produzida em Espanha, acaba na síria a matar mulheres e crianças, mas tudo está bem para nós e só ficamos tristes quando morre o herói da nossa série na Netflix. Mas os verdadeiros heróis, os verdadeiros ativistas estão a morrer lá longe nas montanhas do Curdistão.

Aquela ilustração lá em cima é uma homenagem às feministas anónimas do YPJ que deram a sua vida pela igualdade e justiça entre homens e mulheres e que morreram ao som do nosso silêncio. Talvez um dia quando a União Europeia começar a espalhar direitos humanos em vez de armamento, talvez nesse dia, a revolução das mulheres do Curdistão seja devidamente reconhecida e aplaudida. Talvez a causa curda deixe de ser constantemente esmagada e oprimida pelo silêncio atroz da comunidade internacional. Pode ser que, quem tenha conseguido ler este artigo até aqui, nos ajude a combater esse silêncio. 

Texto: Ricardo Sá Pereira - 5º ano

Ilustração: Ricardo Sá Pereira - 5º ano

Bibliografia

1- Dersim Massacre, 1937-1938

2-Timeline: PKK conflict with Turkey | News

3- UN report details massive destruction and serious rights violations since July 2015 in southeast Turkey  

4 - Turkey’s Other Weapon Against the Kurds: Water

5-Activist Detained in Turkey for Tweets

6- Introduction : GENOCIDE IN IRAQ: The Anfal Campaign Against the Kurds

7-Group Denial | Repression of Kurdish Political and Cultural Rights in Syria

8-Women. Life. Freedom. Female fighters of Kurdistan

9-The Most Feminist Revolution the World Has Ever Witnessed

10-The women who helped defeat ISIS in Raqqa

11-Turkey's plan for ethnic cleansing in Syria must be stopped

12-We stand in solidarity with Rojava, an example to the world | Letter

13-Turkey confirms use of German tanks in Afrin offensive

14-Kurdish Afrin is democratic and LGBT-friendly. Turkey is crushing it with Britain’s help

BULA MEDICINAL | QUO VADIS HUMANIDADE?

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António Lopez participou na Vª Edição do Concurso Literário Anual RESSONANCIA, “Rebeldes com Causa”. Este seu texto garantiu-lhe o 3º lugar.

O ser Humano é sem dúvida um ser peculiar. Cheio de paradoxos, contradições, mas sem dúvida alguém que é muito interessante. Desde os primórdios dos tempos, quando o Homo Sapiens começou a pisar o planeta Terra, muitos desafios foram ultrapassados, houve um desenvolvimento enorme a todos os níveis. Mas, será que com tantas conquistas, tudo o resto acompanhou, tudo o resto foi pensado? 

Foi Martin Luther King quem disse, há mais de 50 anos, que “a ironia dos nossos tempos é que possuímos misseis guiados, mas muitas pessoas sem rumo”. Curioso de também pensar que temos cada vez edifícios mais altos, mas menos tolerância perante tudo o que nos rodeia; que temos estradas e auto-estradas cada vez maiores e mais largas, mas cada vez menos senso comum, cada vez gastamos mais, mas na verdade, temos cada vez menos. E é nestes paradoxos que cada vez mais nos vamos diluindo na nossa humanidade, e nos grandes valores que costumávamos ressalvar, quem não se lembra da revolução francesa e o “Egalité, Liberté et Fraternité”? 

Vivemos cada vez numa sociedade autofágica, cada vez mais sem valores, sem rei nem roque. Dizia Donald Trump que “a coerência é para os falhados” e ninguém pode deixar de pensar que afinal é capaz de existir cada vez mais Trumps ou Pseudo-Trumps a habituar o nosso Mundo. É tempo de dizer basta, de dizer chega, de começar a mudar

Voltando ao número cinquenta, foi mais ou menos há cinquenta anos que as coisas se começaram a complicar, e muito. Até a esse momento, apesar de todos estudos, das séries televisivas, dos filmes como “O dia depois de amanhã” a avisar do que poderia vir aí, da relação causa-efeito entre a actividade humana e as alterações climáticas, ninguém demonstrou preocupação. Muitas vezes a resposta é que a ciência havia de resolver tudo, tal como quando se seca uma mesa cheia de água com um pano…

Curioso é que a ciência havia de resolver tudo, parece que nunca foi levada muito a sério. Todas as acções que se desenvolviam para tentar salvar o planeta foram tão eficazes como um placebo num doente hipocondríaco. A prepotência de alguns líderes mundiais continuarem a poluir, explorar as energias fósseis até ao máximo, encher os oceanos de plástico. 

Em 1992, Severn Suzuki, uma menina na altura, deu uma lição a muitos chefes de estado numa cimeira da ONU, no Brasil, país cujo actual líder é um dos principais figuras a par de Trump na defesa acérrima de que o Aquecimento Global é apenas uma utopia. Vale muito a pena rever a prestação de Suzuki, é um orgulho para todos os jovens, a coragem, a bravura, em enfrentar muita gente na altura. Contudo, todos esses sentimentos contrastam com os resultados que se vêem hoje, ano de 2019, uma inércia quase total por muitos dos principais líderes mundiais.

Há uns meses atrás surge uma jovem sueca, Greta Thunberg, que veio dar uma nova vida à luta pelo planeta Terra. Greta não é só mais uma Severn Suzuki, é alguém com muita coragem, fiel às suas ideias, aos seus princípios. Muitos podem chamá-la de radical, que está ligada a lobbies, mas ela é tão mais que isso. Greta surge num tempo em que parece que o Ze Povismo português parece ter assolado muito do Mundo, e ela veio ser a cara da luta por um amanhã melhor.

Albert Einstein costumava dizer que “não podemos resolver os problemas do presente com as mesmas ideias que os criámos”. Há que começar a abrir os olhos e ouvidos das pessoas que apenas se limitam existir e não querem viver, e usar a luta como a arma para enfrentar os poderes instituídos (é curioso de ver que a etimologia da palavra rebelde é tão curiosa que vou desafiar o leitor a procura-la).

Nascemos sem pedir e morremos sem o desejar, mas enquanto andamos por cá temos que lutar por um lar melhor, e o lar não é apenas a nossa casa, é o nosso planeta. Tudo isto ainda não acabou, estamos todos à beira do precipício, ponto de não retorno, mas o bom é que é nestas alturas que o Homem costuma decidir mudar e fazer algo. Que a doença da rebeldia o ataque bem e com força, e que não haja vacina, para o nosso bem, e das gerações vindouras. 

Texto: Antonio Lopez - 2ºano

Ilustração: Susana Xu - 4ºano

ÂNSIA CRÓNICA | Odes marítimas

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(Soa um piano)

O teu olhar era como a fúria das ondas ao embater na praia quando Posídon, o treme-terra, está aceso em ira.

O teu olhar era como a saudade de Ulisses, cheio de vontade de regressar a casa.

O teu olhar era como um corpo que apetece como um barco, oscilando na tarde cálida e calma, docemente.

O teu olhar era como o pôr do Sol sobre o mar cor de vinho.

O teu olhar era como uma casa caiada de branco.

O teu olhar era como o sorriso duma criança e doía como o choro de uma criança, cujas lágrimas eram tão salgadas quanto o sal que foi atirado sobre as cinzas de Cartago.

O teu olhar era como a noiva de um marinheiro que nunca regressou, de mantilha negra e descalça sobre a areia.

O teu olhar era como a ansiedade que Eros e Thanatos semeiam nos corações.

O teu olhar era como uma solidão azul e marí(n)tima.

(Entram os violinos)

O teu olhar era como se alguém me segredasse ao ouvido: Les sanglots longs des violons de l'Automne...

O teu olhar era como aquela ilha verdejante de que o navegadores antigos falam e poucos acharam.

O teu olhar era como ouvir o canto misterioso das sevilhanas no porto de Cádis.

O teu olhar era como a manhã resplendente, tocada pelas mãos róseas da aurora.

O teu olhar era como um naufrágio inevitável.

O teu olhar era como a púrpura da Fenícia.

O teu olhar era como a rede dos pescadores do mar da Galileia.

O teu olhar era como a faina do povo, orgulhosa e rústica.

O teu olhar era como uma canção francesa que ouvi quando embarquei para a guerra.

O teu olhar era como o sangue que derramámos no outro lado do mar.

O teu olhar era como o oceano imenso que trago cá dentro do peito.

O teu olhar era como uns descobrimentos.

E porque a morte não é eterna, guardarei o teu olhar.

05.01.20

Texto: João Almeida- 1º ano

Ilustração: Eduarda Costa - 6°ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | (Sem título)

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Vida inquieta

repleta de incongruências

imprevistas

Vida cheia 

que vês a preto e branco

mas que é vista por fora

toda ela colorida

a paleta mais completa

Vida que sobrevive a viver

e que vive sobrevivendo

Vida de artista

remediado

Vida de uma borboleta que voa

mas é comida pelas aranhas

e depois reincarna 

num outro ser,

que eventualmente saberá escapar à teia…

Vida do faz tudo 

e do querer estar em todo o lado

eu amo-te Vida

amo-te porque sem Ti 

apagava-me

porque sem Ti

não aprendia a escapar às aranhas

porque sem Ti

nada seria apenas…nada

Texto: António lopez - 2°ano

Ilustração - Felipe Bezerra - 3°ano

LER PARA CRER | MEDICINA E MEDITAÇÃO - Mindfulness, Telómeros e Envelhecimento

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Em 2009, o prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina foi entregue a três cientistas norte-americanos - Elizabeth Blackburn, Carol Greider e Jack Szostak - pela descoberta “de como os cromossomas são protegidos pelos telómeros e pela enzima telomerase”. Este foi um marco crucial no estudo do envelhecimento humano, já que os telómeros são “como que as capas dos atacadores dos sapatos que os impedem de se irem desfiando e desfazendo” relativamente aos cromossomas, preservando assim o material genético. Atualmente, a diminuição do tamanho dos telómeros tem sido associada à exposição crónica de stress e depressão, introduzindo a ideia de que a idade celular possa ser influenciada por fatores psicológicos.

Quando as células se dividem, quer no crescimento ou renovação, as extremidades dos telómeros podem não ser replicadas, já que a DNA polimerase, responsável pela replicação do material genético, não funciona corretamente no final da cadeia. Desta forma, cada vez que há uma divisão celular, o tamanho dos telómeros diminui, as células envelhecem e o homem fica mais exposto, por exemplo, a doenças cardiovasculares, osteoporose, diabetes e até mesmo cancro. Por outro lado, a enzima telomerase contraria esta tendência ao adicionar DNA aos telómeros diminuídos, tornando as células menos sensíveis à degradação. 

A interação entre telómeros curtos e baixa atividade da telomerase é um alvo de estudo cada vez mais popular, uma vez que demonstra ser um dos fatores responsáveis pelo aumento do risco de morte celular. Poderá a manipulação humana destes processos fisiológicos ser o próximo passo da medicina na luta contra a doença e morte?

No seu livro “The Telomere Effect”, Elizabeth Blackburn, que pouco menos de uma década recebera o prémio Nobel pela sua descoberta da natureza molecular dos telómeros, juntou-se a Elissa Epel, professora do departamento de psiquiatria da Universidade da California, para divulgar não só a sua investigação, mas também promover diversas formas de contrariar a diminuição dos telómeros das células humanas. 

Esta equipa demonstrou que fatores como qualidade do sono, exercício físico e até determinados aspetos da nossa dieta estão intimamente ligados aos nossos telómeros. Adicionalmente, verificou que stress cognitivo, pensamentos negativos, relações tóxicas e circunstâncias de angústia e sofrimento levam à diminuição do tamanho destas “capas” dos cromossomas. Não deixam uma grande margem de discussão - pequenas mudanças nos nossos hábitos de vida podem ter grandes consequências a nível celular. 

No entanto, esta não é a primeira vez que Blackburn evidencia a relação entre o comportamento humano e o tamanho dos telómeros. Anteriormente a este livro, publicou um artigo no qual propõe à comunidade científica a existência de uma ligação entre meditação e telómeros em “Can meditation slow rate of cellular aging? Cognitive stress, mindfulness, and telomeres”. Para este tema, considera dois estados psicológicos opostos - reconhecimento de ameaça ou perigo (Threat Recognition) e mindfulness

Jon Kabat-Zinn, médico e fundador da meditação mindfulness, descreve-a como “prestar atenção de uma forma particular: de propósito, no momento presente e sem juízos”. A prática desta atenção ou consciência plena requer uma mente aberta que participe apenas enquanto espetadora, aceitando assim todos os pensamentos e sensações da experiência presente com uma atitude de curiosidade, sem se deixar levar por eles.

Contrariamente às terapias cognitivo-comportamentais (Cognitive Behavioral Therapies) que promovem a mudança dos conteúdos dos pensamentos, a prática de mindfulness requer uma mudança da forma como nós nos relacionamos com eles. As técnicas de meditação mindfulness suscitam a consciencialização dos pensamentos e emoções - perceber que eles existem sem se interessar por eles ou deixar-se levar por medos, juízos do passado ou projeções do futuro - permitindo assim a diminuição do envolvimento emocional. Ao separar a consciência dos próprios pensamentos podemos então tentar avaliar a sua fiabilidade e reagir como tal.

Esta meditação proporciona um maior controlo das emoções a partir do desenvolvimento da capacidade de tolerar sensações de desconforto/angústia, o que por sua vez leva a reações mais prudentes face a eventos provocantes. Ao fugir das emoções e pensamentos negativos, acabamos por lhes conferir um certo poder. Esta resistência opõem-se totalmente à prática de mindfulness, que aceita todos os pensamentos e sensações, sem se deixar dominar completamente por eles.  Para além disso, como o estado de consciência plena não está confinado à prática formal da meditação - pode-se difundir pelas atividades diárias - a prática de mindfulness permite interpretar uma situação como menos intimidante ou ameaçadora.

De facto, na sua investigação, Blackburn conclui que o stress psicológico, caracterizado pela avaliação de ameaças/perigos e pensamentos ruminantes, pode levar a um estado prolongado de reatividade cujos efeitos são visíveis ao nível do envelhecimento celular. Verificou também que técnicas de meditação mindfulness mudam a avaliação cognitiva da situação de perigo para desafio. Este “despertar transformativo da consciência profunda” pode-nos proteger dos efeitos nocivos do stress ao limitar a mente ruminante, isto é, ao focar a atenção na experiência presente, interrompendo assim a teia de pensamentos que leva muitas vezes a uma reação prolongada ao stress, 


A ligação científica entre meditação mindfulness e o seu efeito no envelhecimento pode ter implicações culturais importantes, juntando-se à crescente lista de vantagens desta prática, cada vez mais associada ao aumento do bem-estar, do rendimento, produtividade e recuperação da saúde. Mas a sua popularização levanta algumas questões: poderá o seu efeito terapêutico, originalmente destinado a hospitais no final do século passado, ser reproduzido e comercializado globalmente? Talvez seja este o momento ideal para começar uma discussão sobre o futuro alternativo da medicina.

Texto: Bruna Alves - 2º ano

Ilustração: Ana Napoleão - 4º ano

ÂNSIA CRÓNICA | Quarentena - o tempo de reflexão que tanto precisávamos

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Encontramo-nos a viver algo que nunca pensámos experienciar. 

Sinto que entrei numa bolha e a vida real apenas parece um pesadelo. 

De repente, os abraços foram trocados pelas videochamadas, as pausas para café entre aulas foram trocadas por caminhadas solitárias pela casa, as aulas em conjunto na faculdade trocadas por horas seguidas à frente do computador. Muita coisa mudou, para não dizer tudo. Ganhámos medo ao desconhecido que se avizinha. Medo de nos aborrecermos em casa nos dias que nos esperam. Medo que a inconsciência das pessoas persista, apesar de todos os avisos que estão a ser feitos. Medo que este vírus imprevisível chegue a alguém que conheçamos, e que esta situação deixe de ser algo que “só acontece aos outros”. 

É quando somos obrigados a parar e quando olhamos para a nossa vida que percebemos a verdadeira importância das pequenas coisas. Faz-nos valorizar cada pequena coisa que nos é dada, cada pequeno momento que vivemos. Quantas vezes, há dois meses atrás, pedimos para parar? No meio de um semestre e de uma época de exames de loucos, muitas foram as vezes em que implorámos por tempo para descansar, por mais 5 minutos de sono de manhã, em que desesperámos no meio de tudo o que tínhamos para fazer, que parecia não ter fim. Quantas vezes, há uns meses atrás, nos levantámos de manhã para mais um dia rotineiro e refilámos por ser só isso, só mais um dia normal? 

Somos uma espécie com bichos carpinteiros na alma, como se nunca a pudéssemos deixar descansar, como se nunca quiséssemos que a paz assentasse em nós. Não nos satisfazemos rápido e queremos sempre estar onde não estamos. Temos a língua inquieta por natureza, e lamentarmo-nos por tudo e por nada entretém-na. Até que o inesperado chega, até que nos tiram o chão. E de repente, tudo aquilo de que refilámos parece tudo o que é verdadeiramente importante. 

Se antes implorávamos para que o tempo não se apressasse, de repente vemo-nos a pedir o que nunca pedimos até hoje: pedimos que o tempo passe, e rápido. Para que leve consigo o pesadelo que estamos a experienciar, mesmo que de longe. Que leve tudo isto, e que traga de volta a rotina que chamámos de aborrecida vezes sem conta. Que traga as viagens de metro em sardinha enlatada, os almoços barulhentos, as aulas que nos fazem querer fugir da faculdade, os encontros inesperados no meio dos corredores. Que traga as lancheiras e as filas nos microondas, os lamentos por não haver mesas livres no Egas ou por auto estar mais quente que o Saara. Que traga a magia presente em cada dia vivido neste sítio. O sítio onde, agora, centenas de profissionais de saúde estão a dar tudo o que têm para que todo este pesadelo acabe rápido, com o menor número de vítimas possível. 

Sem que nos apercebamos, tudo isto não vai passar de uma memória menos boa. Façamos a nossa parte para que acabe rápido. 

A rotina há de voltar. Vai tudo voltar ao normal.

Texto: Inês Pinto - 2º ano

Ilustração: Inês Pinto - 2º ano

2º Lugar V Concurso Literário RESSONÂNCIA "Rebeldes com Causa" | Incomoda-te

O V Concurso Literário RESSONÂNCIA

O V Concurso Literário RESSONÂNCIA

Tenho por hábito ser um indivíduo particularmente chato e ligeiramente invejoso. Por essa razão, quando os media e as redes sociais se levantam em uníssono idolatrando este ou aquele, cresce em mim uma enorme vontade de me assumir “do contra”, o que frequentemente me leva à pesquisa de mil e um argumentos que possam ajudar a refutar a opinião do público geral. É certo que o resultado destas iniciativas me oferece mais atrasos no estudo do que sucessos em discussões com amigos e família, contudo não raras vezes acabo por me aperceber de realidades interessantes. A mais recente descoberta surgiu enquanto tentava desconstruir a ação de uma adolescente sueca (a quem, para variar, acabei por reconhecer mérito) e combina os jovens, a sua (in)ação e uma sociedade castradora. 

Primeiro, deve manter-se presente que o jovem é irremediavelmente um ser inquieto, seja por fora ou por dentro, embora para tal tenha desculpa. Repare-se que com o término da infância e a entrada na juventude, o nevoeiro protetor da inocência começa a desaparecer, levando a que o ser humano se redescubra a si e aos outros num mundo imperfeito, em disrupção com grande parte das suas crenças primárias. Ora, o ajuste do indivíduo a esta nova realidade exige um longo e árduo processo de readaptação, onde dúvidas, desejos, físico e personalidade chocam, traduzindo uma existência turbulenta, mas não obrigatoriamente disfuncional. Todavia, uma percentagem preocupante de adultos olha com desprezo para esta “intranquilidade fisiológica” tomando os seus efeitos comportamentais por falta de respeito ou disciplina. Assim, escolas e pais tentam controlar ao máximo as manifestações dos jovens, espartilhando as suas áreas de interesse, menosprezando as suas reivindicações, baixando-lhes as expetativas, tirando-lhes aos poucos a sua natureza inquieta. Para o comprovar não são necessárias as minhas pesquisas, porquanto as nossas histórias pessoais tratam de o demonstrar.

Na minha opinião, esta campanha dissuasora contribui para a génese de um fenómeno crescente nas redes sociais – a pseudo-ação - a atividade através da qual um jovem escreve e partilha manifestações de revolta contra um dado assunto, sem que exista uma vontade concreta de participar num verdadeiro movimento de mudança que altere esse paradigma. É o que ocorre quando alguém, em choque, partilha imagens de seres vivos presos em plástico, mas continua a privilegiar a compra de garrafas de água desse material à hora de almoço. Ou quando se chora a perda da biodiversidade na Amazónia, ao mesmo tempo que se ignora o impacto ambiental de um novo aeroporto no Montijo. Não se trata de puro egocentrismo ou inconsciência, mas sim da solidificação de uma noção de que se é insuficiente para se fazer a diferença, que se manifesta através de atos incongruentes. 

Não obstante, o fenómeno de Greta Thunberg tem-se erguido recentemente como uma faísca percursora, que relembra os jovens da sua proatividade reprimida. Observar como uma rapariga de 16 anos ousa faltar às aulas (aquele bicho-papão com importância divina para muitos pais) para defender aquilo em que acredita diante dos decisores políticos do seu país serve de um exemplo que facilmente os consegue inspirar, mostrando-lhes que qualquer um tem uma voz que merece ser ouvida. Neste sentido, a sua influência na mobilização de milhões de estudantes nas Greves Climáticas, que se espalham por todo o globo, tem tanto de mediático como de natural, visto que tudo o que Greta se limita a fazer passa por acordar os seus pares para as suas verdadeiras capacidades. 

Ainda assim, este poder instigador permite que os jovens se apercebam de outro ponto relevante: a única forma de serem ouvidos é a partir da sua união em torno de uma causa comum, pelo que a ação de cada elemento conta e é fundamental.  Efetivamente, raros são os casos na História de um jovem que, por si só, foi capaz de inverter a ordem vigente. A aluna Emma González, por exemplo, conseguiu pressionar o Estado da Florida a promover leis de controlo de posse de armas, conquanto muito por ter sido apoiada em diversas ocasiões por milhares de colegas de outras escolas americanas.  Já Amika George logrou que o governo do Reino Unido financiasse a aquisição de produtos de saúde para distribuição gratuita em várias escolas e faculdades britânicas, contudo tal teria sido bem mais difícil sem o apoio das duas mil pessoas que a ela se juntaram numa manifestação em dezembro de 2017. Mas há mais! De facto, a lista de demostrações do poder da união juvenil prolongar-se-ia por longas linhas, passando ainda pelo Protesto na Praça Tian'anmen, pelo maio de ‘68 em França ou pelos movimentos estudantis portugueses durante o Estado Novo.

Resumindo, por mais que um jovem grite, a sua mensagem só será ouvida se obtiver um eco pelos seus pares. Por esta via, o peso dos grandes ativistas juvenis constrói-se a partir de uma base coletiva que lhe dá legitimidade, pelo que todos são agentes necessários no combate pela construção de uma sociedade melhor. Assim, e falando diretamente para ti, o mundo precisa que te revoltes, que acordes, que te inquietes. Afasta o medo da repressão, do julgamento e da impotência. Se é nosso o mundo de amanhã, então que nos juntemos para moldá-lo à nossa imagem. 

Texto: Diogo Miranda

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

ÂNSIA CRÓNICA | (Sem título)

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Penso que escrever é algo que não é difícil, nem é algo que esteja vedado à maior parte das pessoas; não é uma habilidade pertencente apenas a uma elite intelectual etérea, acima de qualquer mortal. A partir daquele momento, verdadeiramente mágico, mas gradual, que é a aprendizagem do código universal da linguagem escrita, fica-se automaticamente apto para escrever o que quer que seja. A grande diferença entre o tal comum dos mortais e o Autor, de notar a letra maiúscula e o caráter gramatical próprio que torna este vulgar nome comum no coletivo de todos os grandes escritores, de livros de grande qualidade e bem sucedidos, entrevistas feitas e crónicas escritas em grandes jornais, é o facto de que o que aquele escreve tem significado, tem um tema, uma estrutura, um facto, uma história, uma palavra, uma mensagem subjacente que diz algo ao grande público. Penso que é esta a derradeira vitória do escritor verdadeiramente capaz: a procura bem-sucedida por algo que, ao ser lido, causa uma reação no leitor, não o deixa indiferente... Portanto quem quer que escreva deve fazer essa busca interior ou exterior, mental ou experimental, física ou metafísica por algo que suscite outro algo no leitor. É o que tento fazer nesta composição, nesta crónica, que é dos formatos mais livres e plásticos da literatura: falo, através da linguagem escrita, do sonho, e da sua tradução em algo escrito, como algo obrigatório para a homeostasia intelectual do Homem.

É uma necessidade decididamente primordial sonhar, tal como é viver. Aliás, o sonho é a forma de viver que a mente encontrou quando está anestesiada pelo sono, retemperador e sempre necessário. 

A forma que tenho de o recordar e exprimir é escrevendo, outra coisa a que não se deveria poder fugir (pelos motivos que apresentei linhas antes). Escrevendo, para outro ler, seja este outro o autor, o narrador ou o leitor, diferente ou igual ao autor, é codificar toda uma experiência, sensorial, sentimental ou intelectual em símbolo. À primeira vista, parece reduzir algo cerebral ou mental a meros caracteres escritos a tinta ou carvão. Mas não. Enganado estará o leitor, diferente de mim, que pense assim. É com esta derradeira vitória evolucionista do intelecto, intelecto este que nos torna humanos, individualmente, e humanidade quando contextualizados e agrupados “taxiologicamente”, que se partilham as tais experiências de quem escreve com quem lê, com as palavras encerrando significado, algo fulcral e que enche qualquer texto, linha ou palavra, e provocando outras experiências imprevisíveis ao leitor. 

É a natureza dessas experiências de leitura, juntamente com os elementos estéticos da escrita e outros possíveis detalhes, e a resposta a estas que tornam mágicas as composições escritas que se produzem constantemente.

Magia, o tal significado, aquele “algo” é o que se pretende, é o que se liga ao nosso coração e à nossa mente e nos diz que o conjunto de palavras escritas valeu a pena ter sido produzido (e que o sonho valeu a pena ter sido sonhado). Finalizo reiterando que penso que é algo ao alcance de todos. O sonho diz-nos, a cada um de nós, que o escritor verdadeiramente capaz vive dentro de nós: nuns ele já saiu, já está descoberto; noutros esconde-se ainda, teimoso e tímido. O verdadeiro pesadelo é deixá-lo morrer quando o corpo, já velho, se tornar torpe, podre e morto; a Humanidade perde, sempre que morre um ser humano, uma história, uma crónica, aquele “algo”. Não devemos não escrever. Não podemos não escrever...

Texto: Diogo Cunha - 2º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Beladona, menina dos meus olhos

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A água cai límpida da açude,

Escorre por entre os quelhos

Recalcados nas velhas pedras.

 

Eu lá observo.

E observo com o meu amor.

 

Sentado na margem do rio,

Penteio os meus cabelos

Com uma escova de cerda

Enquanto ele lava meu corpo nu.

 

Torce o pano que me limpa,

No rio sereno e sem tempo,

E o sangue das minhas feridas

Conjuga-se na sua matéria de ser

Rio sereno e sem tempo.

 

Água tão límpida

Cai-me sobre o peito

Sobre o colar de chumbo.

E sobre os olhos: beladona

Do meu belo amor.

 

Dedaleiras soam ao vento

Como sinos ao entardecer.

 

Como é belo amar enquanto brinco

Com a serpente que

O braço me estrangula.

 

E lá observo,

E observo com o meu amor,

Que o que impede esta água

De abrir novos vales

É saber para onde vai

E, seja esse destino bom ou ruim,

Este rio vai morrer assim.

 

O meu amor canta-me cantigas

E suspira baixinho.

Canta e tudo vira luz,

Tudo vira treva,

Tudo vira amor,

Tudo vira ódio.

 

 

Enterra os pés na areia enquanto

Me beija os lábios em sangue

E espeta as suas unhas

Na minha carne pálida.

 

E a água cai límpida na açude

E o sol reluz quente nos abrolhos.

Contigo só vejo isto,

Beladona, menina dos meus olhos.

 

Texto: Uriel Porto Cruz
Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Medo do Medo

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Escrevo a medo

De dizer de mais

De ser de menos

De falhar de novo

Por isso, tremo

Rascunho, risco, amachuco

Engraçado

Escrever é viver

Tento, engano, quebro

Ao menos na escrita não magoo

Sem ser o papel

Com a força que faço

Com as marcas que lhe deixo

Com as lágrimas que nele afogo

Se calhar dói sempre

Se calhar é a sina de uma vida

Que mesmo que brilhe

É sofrida

Texto: João Valente - 5ºano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

ÂNSIA CRÓNICA | Climax do clima

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O mar está mais vivo do que vós. Com cada onda mortífera, ele respira. Ele engole o que lhe atiram sem piedade, engole navios inteiros e toneladas de plástico. Está debilitado, mas não tanto como vós.

Com cada maré cheia, uma inspiração.

É insignificante o que está à sua frente a bloquear o percurso predestinado pela lua, uma vez que, devagarinho, mas com persistência, ele acabará por lá chegar. Não interessa qual a falésia que protege a cidade da ira neptuniana, a água irá alcançar-vos. Este bem tão frágil e tão escasso do qual abusais diariamente é capaz de destruir pedra? É verdade… A água é mais forte do que a rocha, se tiverdes em consideração a passagem do tempo. Arribas desgastadas, casas desmoronadas, plantações dizimadas… Tudo devido à fúria aquática que fala por mim.

Temam criaturas humanas, temam a sua cólera, as suas cheias e a sua ausência.

Com cada maré vaza, uma expiração.

Achai-vos importantes na conquista dos quatro elementos e na consequente poluição dos meus subsistemas abertos? Que humanos asnos… Esquecei-vos do meu vasto império. Esquecei-vos de como dependeis da bolha de ar que poluís num ciclo vicioso de auto-sabotagem. Esquecei-vos de como sou o sustento dos vossos corpos, sou o solo fértil que vos alimenta, sou todos os combustíveis fósseis, intrínsecos nas vossas máquinas... Nas terríveis máquinas eletrónicas que vos transportam, interligam e educam, enquanto vós as venerais. Esquecei-vos de todos os seres que me habitam, que habitam o meu mar e como ele habita todos os seres. Mas mais importante do que tudo isso, por lapso, esquecei-vos de como dependeis dele, do oceano, da água, qual endossimbiontes.

Como abusais de mim, vossa mãe Terra…

Com cada inspiração vossa, mais químicos desfazem as vossas células, mais perto estão da vossa sepultura. Que masoquismo é este? Em vez de um ar puro, escolhestes contaminá-lo! Em vez de um guarda sol de ozono, optastes por rasgar o seu tecido! Porquê? Que venha a radiação ultravioleta! Seja bem-vindo o cancro! Em vez do equilíbrio no ecossistema entre espécies, preferistes a solidão egocêntrica. Em vez do uso cuidado e responsável dos bens materiais que vos dispus, decidistes esgotá-los e perdê-los. Agora, tereis de arcar com as consequências.

Humanidade, entendei: deveis a mim cada expiração feita, deveis a mim toda a vossa vida, pois vos concedi tudo o que necessitaríeis para viver até ao óbito solar. No entanto, em vez disso, escolhestes as vias céleres, o caminho fácil para os fracos. E agora, com todo o contínuo erro exponencial, correis o risco das vossas respirações cessarem-se. Porém, tal não me aflige. Afinal, em última instância, eu (com o mar, com o solo e com o ar) continuarei a existir neste sistema solar.

Após a vossa extinção, estou certa de que haverá uma nova espécie que vos substituirá, como tantas outras vezes já aconteceu. Eu irei reabilitar-me do mal que me fizeram, as minhas feridas irão cicatrizar. Todavia, entristece-me a despedida que aí vem inevitavelmente…

Criaturas obtusas, porque é que agiram assim quando a vossa espécie tinha tanto potencial?

Ainda há tempo para reverter o vosso fim! Tentem e eu perdoar-vos-ei. No entanto, terão de agir depressa, senão simplesmente passarei ao próximo a oportunidade de estar nesse vosso lugar. Acreditem: sois os únicos que neste dilema têm algo a perder, porque, quando a vossa existência terminar, a minha irá prosperar e a dos que vos hão de suceder também.

Texto: Madalena Filipe - 1º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Poeta de poemas

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Vejam só, vejam só!

Vejam só, que temos Poeta!

Poeta dos que escreve poemas 

E não dos que cospe rascunhos,

Poeta dos que conhecem as palavras todas

E onde as rimas nunca se forçam!

Poeta analisável,

Só poemas com sentido. 

Esses que escrevem sem rimar,

Às vezes sem pensar,

Sem imaginar outras lentes a olhá-los,

Sem publicar,

Sem sentir!

Que sentido fazem eles?

Poeta que é Poeta faz Poemas para os outros. 

Por isso analisamos Fernando Pessoa

(Esse Senhor que explicou a própria Mensagem)

Por isso pensamos no que é fogo que arde sem se ver

(Para quê deixar simplesmente as palavras originais?)

Por isso dizemos que o Outro escreve como se falasse

(Claro que não ignorava os pontos finais só porque sim!) 

Poeta a sério tem uma arca com Poemas riscados,

Censurados,

Mas a arca está à vista!,

Para um dia alguém tropeçar nela

“Sem querer”

E publicar o oculto, com mais magia que nunca. 

Poeta que se preze procura aliterações,

Metáforas,

Analogias fugidias,

Formas de ligar palavras para outros sentirem,

Sentirem o que ele sente. 

Mas poeta que é poeta é um “fingidor”. 

poeta que é poeta desconhece o significado da palavra Poeta,

Só conhece poemas. 

poeta é o que faz chover palavras em verso

E ouve as rimas no canto inferior direito da mente 

(Porque é de lá que elas vêm,

Mesmo que só de vez em quando)

poeta apenas finge que sente,

Ou sente mas finge pensamentos,

Ou sente e escreve. 

poemas escreve quando precisa

E quando precisa não escreve. 

poeta que é poeta tem um só público:

O papel, a caneta

E o candeeiro de rua, disfarçado de um candeeiro numa secretária. 

Namora-os aos três sem medos

E assume-o nas palavras! 

Escreve para eles

E conversam horas a fio. 

No fim, pergunta-lhes se publica o poema

E eles respondem sempre o mesmo:

“Escreves para quem?”

E o poeta responde “Ninguém”

E eles dizem

“Escreves para nós e para ti.”

E o poeta sorri

E guarda o poema na pilha a publicar,

No lado direito da mesa, 

Porque já escreveu para ele,

Agora outros leem se quiserem. 

poeta que é poeta é poeta e não o sabe

Por se perder em tanto poema

Que esquece que tudo isso é Poesia.

Texto: Raquel Moreira - 3º ano