LER PARA CRER | Qualidade no Serviço Nacional de Saúde

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A qualidade como uma ferramenta para acrescentar valor à saúde

Com a crescente demanda da sociedade relativamente aos serviços de saúde e tendo em conta a importância de dinamizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), torna-se fundamental assegurar a qualidade dos serviços prestados e a sua melhoria contínua. As iniciativas de reestruturação e as reformas do sistema de saúde, a redistribuição de recursos humanos e materiais, a redução de verbas públicas, a privatização de unidades de saúde, o aparecimento de novos planos e seguros de saúde e de novas tecnologias, geram alguma apreensão e um consequente sentimento de necessidade de confiança, quanto à qualidade dos serviços de saúde. É importante que os responsáveis por gerir as mudanças no sector da saúde estejam empenhados em implementar ferramentas para a monitorização da qualidade destes serviços, com o fim de garantir a prestação de cuidados de saúde de excelência (ou o mais próximo possível dela).

“A certificação é um meio e não um fim”

Dr. Alexandre Valentim Lourenço (Presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos) in Publicação Medi.com n.º224, pág. 20

A certificação em qualidade dos serviços de saúde, pode ser considerada como um meio ou uma ferramenta que apoia a criação de uma estrutura organizacional, com os recursos necessários, os procedimentos operacionais e as responsabilidades de cada processo claramente estabelecidas, levando à obtenção de resultados positivos e de melhoria contínua, ao nível dos procedimentos clínicos e a um consequente aumento da saúde e também da satisfação dos utentes. A certificação materializa-se na implementação de um Sistema de Gestão da Qualidade (SGQ) que deve ser documentado e formalizado através de um Manual da Qualidade.

“Aquilo que não se mede, não se conhece.”

Drª. Maria João Lobão in Publicação Medi.com n.º224, pág. 21

Os objetivos da implementação de um SGQ passam por fornecer uma abordagem sistemática de atividades que possam afetar a qualidade do serviço prestado, através da construção de procedimentos claros e objetivos, aplicáveis a cada atividade, por exemplo, na área administrativa, na área técnica e na área médica, que minimizam a existência de falhas na prática clínica e fornecem uma evidência objetiva de que a qualidade foi alcançada, através de indicadores que monitorizam os procedimentos do SGQ.

Em Portugal, o modelo oficial de acreditação de unidades de saúde do Ministério da Saúde, assenta no modelo da Agencia de Calidad Sanitaria de Andalucía (ACSA), que se baseia na melhoria contínua da qualidade dos serviços de saúde prestados, para além de também ter em conta o preconizado no modelo de excelência organizacional da EFQM (European Foundation for Quality Management) e em princípios da gestão da qualidade presentes em normas internacionais (ISO 9000).

 “Só quando tivermos todas as pessoas a pensar diariamente que querem melhorar a sua área ou um certo indicador de infecção ou de infecção dos tecidos após cirurgia, é que serão obtidos bons resultados.”

Dr. Alexandre Valentim Lourenço (Presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos) in Publicação Medi.com n.º224, pág. 20

O Serviço de Imagiologia do CHULN é certificado em Gestão de Qualidade desde 2016

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O Serviço de Imagiologia Geral e de Imagiologia Neurológica do CHULN é certificado pela APCER desde 2016, no âmbito da norma ISO 9001:2015 - Sistemas de Gestão da Qualidade e apresenta excelentes resultados no processo de melhoria contínua desde a sua implementação, essencialmente ao nível da organização e controlo de processos, melhoria do parque tecnológico, uniformização de procedimentos e comunicação organizacional, o que levou à obtenção de “resultados positivos no retorno da informação por parte dos Utentes, Colaboradores e Clientes Internos”.

A RESSONÂNCIA esteve à conversa com o Técnico de Radiologia António Almeida, designado como Gestor de Qualidade do Sistema de Gestão de Qualidade do Serviço de Imagiologia do CHULN. Aqui fica um excerto desta entrevista:



Entrevista ao Gestor de Qualidade do Serviço de Imagiologia do CHULN

(Téc.  Radiologia António Almeida)

RESSONÂNCIA: Quando decidiram implementar o SGQ e porque razão?

Téc. António Almeida: A decisão de implementar o SGQ no Serviço de Imagiologia Geral e Imagiologia Neurológica do CHULN partiu da vontade expressa pelos respetivos Diretores de Serviço e Técnica Coordenadora em Abril de 2015, com vista à maior capacitação dos seus colaboradores, à monitorização das práticas e seus requisitos, à satisfação dos utentes, clientes internos e externos, à melhoria contínua e ao desenvolvimento sustentável dos referidos Serviços.

RESSONÂNCIA: Quem participa na dinamização do SGQ?

Téc. António Almeida: Para implementar este SGQ foi criado um Grupo Dinamizador da Qualidade (GDQ), liderado por um Gestor da Qualidade do Serviço de Imagiologia, que tem como missão informar e envolver todos os grupos profissionais (Médicos, TSDT, Enfermeiros, Assistentes Operacionais e Assistentes Técnicos) para todas as questões da Qualidade.

Nesse sentido, foram criados vários grupos de trabalho com elementos de ligação a estes profissionais, bem como um website interno designado "Área da Qualidade", no sentido de otimizar a comunicação entre todos e a dinamização do SGQ.

RESSONÂNCIA: Quais foram os principais objetivos alcançados até agora e qual o impacto do SGQ na realidade do SNS?

Téc. António Almeida: A Certificação da Qualidade permitiu grandes melhorias em ambos os Serviços (Imagiologia Geral e Imagiologia Neurológica), ao nível da organização e controlo de processos, melhoria do parque tecnológico, uniformização de procedimentos e comunicação organizacional. Essa melhoria encontra-se evidenciada nos resultados positivos obtidos no retorno da informação por parte dos Utentes, Colaboradores e Clientes Internos.

RESSONÂNCIA: Qual o contributo dos médicos para o SGQ?

Téc. António Almeida: O maior contributo do grupo de Médicos para o SGQ vem da parte dos seus responsáveis máximos internos, ou seja, os Diretores de Serviço, uma vez que toda a aprovação de documentos, revisão do Sistema e planeamento de novos objetivos e metas passa pelos mesmos.

Contudo, também os restantes Médicos do Serviço contribuem para o SGQ, nomeadamente através de sugestões de melhoria, criação e aprovação de protocolos diversos.




Referências Bibliográficas:

  • Departamento da Qualidade na Saúde, Direção-Geral da Saúde. Programa Nacional de Acreditação em Saúde; 2014.

  • Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde 2015-2020, https://www.dgs.pt/qualidade-e-seguranca/estrategia-nacional-para-a-qualidade-na-saude.aspx

  • Região do Sul da Ordem dos Médicos. Boletim Informativo Medi.com n.º 224; Junho de 2019; 20-21. https://en.calameo.com/read/000163849ace60bab2887

  • Cleto RL. Qualidade Percebida e Satisfação dos Pacientes do Serviço de Oftalmologia do Hospital CUF Descobertas / Centro Hospitalar De Lisboa Central, EPE. Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa - IPL; 2014.

  • Aragão de Sousa V, Fialho J. Avaliação da Qualidade : Estudo Percetivo da Qualidade e Satisfação em Radiologia. Tmq – Tech Methodol Qual. 2012;1–23.

Texto: Carlos Daniel Santos - 6º ano

Fotografia: Rita Ribeiro - 4º ano

BULA MEDICINAL | O que é a Liberdade?

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A Liberdade é respeito, são direitos e deveres, que são o núcleo da sociedade. Mas nem tudo são cravos, a Liberdade é, sobretudo, rosas(E assim deve ser).

Isto porque, tal como uma rosa, a Liberdade tem o aroma doce da felicidade, a textura sedosa da fraternidade, a beleza sedutora da paz. A rosa é capaz de feitos (ou defeitos, mas cada coisa a seu tempo) inigualáveis. Que melhor exemplo temos nós, portugueses (e portuguesas, se quisermos ser redundantes), que daqueles que, após 40 anos de opressão, sentiram, muitos pela primeira vez, a verdadeira cor, frescura e textura da Rosa, sem terem que o fazer falsamente, clandestinos, olhando por cima do ombro, sempre inseguros, sempre com medo, sempre a preto e branco.

No entanto, suplantados por esta aura angelical, há os espinhos, que nunca devem ser menosprezados. Tal como uma rosa, a Liberdade deve ser cuidada delicadamente e não de forma brusca ou rude, pois muito facilmente se torna a rosa em silva espinhosa e aguçada.
Há que duvidar dos que fazem da Rosa apenas um cravo, porque significa que nunca tiveram realmente acesso à Rosa, ou então, desvirtuaram-na desmembrando-a dos espinhos que alertam para o cuidado que se deve ter com Ela, ou ainda, que a tornaram fácil, falsa, feia, plástica, para iludir quem passa.

É por isto que enquanto muitos reivindicam cravos com palavras cheias de espinhos faz sentido, para mim, relembrar o que é a Rosa. Porque este jardim plantado à beira-mar consegue ser bastante “despropício” às rosas. E o que seria de um jardim sem elas?

Texto: Santiago Ribeiro

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Cardíaca concessão

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Desprimorosa decisão administrativa 

Teve o nobilíssimo governo cerebral. 

Decidiu por unanimidade irreflexiva 

Privatizar um vital órgão estatal. 

Presto e sonante se arvorou o protesto 

Dos muitos cardiomiócitos sindicalizados 

Ao ver o seu meio de produção honesto 

Assim tomado por glamorosos privados. 

Como se a produtividade lhes desagradasse, 

Os novos gestores decretaram no momento 

Que a frequência cardíaca aumentasse 

Na ordem dos oitenta e um porcento. 

Como para isso não detinham capital, 

Anexando um suborno em dopamina, 

Candidataram-se a um subsídio estatal 

Que lhes chegou sob a forma de epinefrina. 

Graças aos cardiomiócitos explorados, 

A taquicardia tão brutalmente imposta 

Rendeu débitos cardíacos assaz avultados 

Aos gestores, sequiosos de lucrativa resposta. 

Mas como a qualquer grande faturação 

Se sucede invariavelmente uma derrota, 

O tecido fabril, atingindo a exaustão, 

Por pouco não determinou a bancarrota. 

A segunda ruinosa deliberação 

Do diligente executivo bipolar 

Foi deslocalizar a sede de gestão 

Do nó sinusal para a junção atrioventricular 

Esta medida, diziam eles, visava corrigir 

O deletério efeito do imposto antipático. 

Procuraram assim aos encargos fiscais fugir 

E ao controlo simpático e parassimpático. 

Presunção mais apartada da realidade 

Não podia ser proferida com efetivo rigor. 

O corte em três vezes da produtividade 

Foi o único efeito de tamanho despudor. 

A douta administração declarou imediatamente: 

“Escolham: despedimentos ou insolvência”. 

Mas isso só agravou o que estava decadente. 

Surgiram sinais de cardíaca insuficiência. 

O setor atrial ficou assim disfuncional 

E a fábrica passou a funcionar a meio gás. 

Diziam eles “é ritmo de escape juncional”, 

Eufemismo que até aos oprimidos apraz. 

A indústria pulmonar foi das primeiras 

A sofrer os efeitos sistémicos de tal gestão. 

Veio a público denunciar as cardíacas asneiras 

Que provocaram nela geral inundação. 

O edema pulmonar acarretou como resultado 

O decréscimo da importação de oxigénio. 

Respondeu o cardíaco gestor abnegado: 

“Então, passem a importar nitrogénio”. 

Uniram-se em protesto irredutível 

Outros órgãos de boa prestação e fama. 

Denunciando uma hipoxia indesmentível, 

Exigiram ao governo um eletrocardiograma. 

Já o ministro da Indústria e do Labor, 

Do alto do núcleo do trato solitário, 

Não interveio (a despeito do clamor), 

Sob receio de ser chamado totalitário. 

O desemprego era discretamente evidenciado 

Pela elevação da creatina cinase sérica. 

Nem o facto de os valores terem duplicado 

Fez o governo acordar da sua ilusão feérica. 

E eis que se sucedeu o inevitável findar 

Naquele fatídico e malfadado dia: 

A indústria entrou em fibrilhação ventricular 

E logo de seguida em fatal assistolia. 

E agora jaz empedernida toda a sociedade, 

Cardiomiócito operário, capataz e gestor. 

Todos eles em idílica e serena igualdade 

Lado a lado na necrose e ausência de dor. 

Mediastínica fábrica outrora tão fecunda, 

Como te deixaste tomar por mão privada? 

Como te tornaste carcaça moribunda? 

Mais valia teres sido renacionalizada! 

A quem privatizei o meu complexo industrial cardíaco 

7 de maio de 2017

Texto: Vasco Lobo - 4º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano


ÂNSIA CRÓNICA | Humanamente em flor

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Humanos: vistos do céu, somos um formigueiro azafamado, a eliminar, distraidamente, tantos outros formigueiros. Descemos um pouco e, quase ao nível do solo, somos cardumes da mesma espécie num tráfego de elementos, posses e símbolos, sem que nos fundamos completamente, preservação egoísta da paradoxal individualidade do grupo. Então, pousamos os nossos pés frente aos pés dos outros, levantamos os olhos e fitamos duas nebulosas, umas cheias, brilhantes de possibilidades, outras baças, em busca de uma remanescência de hélio, ou de hercúlea força, para continuarem quentes e seguras. Alinham-se com buracos negros laterais, famintos de informação, de códigos por decifrar que possam refrear o caos de explosões em turbilhão que eclode no cofre craniano. E no vértice inferior do triângulo a formar, o gramofone, pulposos gomos de toranja rubra, suaves ao toque, galvanizante para os recetores mil, húmidos como uma saudade de mar, abertos ou fechados, belos artesãos de sons, os últimos a tocar a melodia da lira vocal, projétil de símbolos invisíveis, lançados para o espaço entre cada mundo humano, supersistemas-extremidade da sinapse da incerteza, onde tombam olhares e sorrisos, inseguranças e medos, confissões tímidas e cacos. 

E, então, furamos um crânio. Mas não vemos senão uma pastosa massa cinzenta, coberta de aguarela sanguínea. E por mais aproximações que façamos, a microscopia não encontra as nossas cicatrizes mais encobertas no citoplasma das células, nem do cérebro, nem do coração. Onde estamos nós? O mundo humano que vemos quando nos olhamos uns aos outros nos olhos é um lugar sem nome por descobrir, sempre indescoberto, botão de uma abstratamente colorida flor que nasce do caos, o caos que lhe corre nos vasos e a nós faz quentes as veias, que tem pétalas de metal, cofre inviolável, de violento interior indecifrável.

Não pousamos as nossas mãos na relva do mundo dos outros, e nos seus rios de lágrimas, jamais nos banharemos. É impossível até antever este mundo que a flor, com seu caule frágil, sustenta. Ouvimos os seus pássaros cantar, mas o som vem distorcido e sujo, é mero símbolo do grito que dói. E mesmo quando se contorcem os rostos, são uma milésima do quão torto está o interior, do quão tortuosa se tem a alma. O olhar é a mais sincera das radiografias, a escavação mais profunda, mas é, ainda, insuficiente. Se das nebulosas se soltam braços, cujas mãos se encontram e entrelaçam, o toque luminoso que um recebe é filtrado pela sua íris, e a mensagem do outro é já uma de nós próprios para nós mesmos. 

Nunca ouvimos os outros e a ponta dos nossos dedos nunca toca as suas chagas, a podridão do seu sangue jamais a descobrirão as nossas narinas e ver o sal seco do seu choro ser-nos-á sempre impossível. Olhamo-nos e vemo-nos refletidos, interpretamos os outros à nossa imagem e semelhança, como deuses de nada que somos todos. As palavras que os outros nos dizem não nos ferem, não nos inferem a dor que os inferna. Somos um formigueiro de cofres fechados, abandonados à incompreensão de si mesmos, na mesmice de se estar só, irremediavelmente só, num oceano de tentativas de empatia falhadas, de esperanças ancoradas, de ligações deslaçadas…

Num mundo de humanos, humanos muitos, humanos mundos, muitos mundos selvagens, na virginal solidão de um jardim por florir.

Texto: Ana Fagundes - 1º ano

Fotografia: Miguel Henriques - 6º ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | Copo mentrual vs Tampões

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O tampão, tal como o penso higiénico, tem origem perdida na antiguidade. O registo mais antigo indica o uso de tampões de papiro no século XV a.C. no antigo Egipto. A sua forma atual nasceu em 1933, e foi publicitado como um método higiénico e discreto de absorver o fluxo menstrual, sem restringir movimentos e atividades. Assim tornou-se um elemento essencial na vida feminina. 

No ano anterior foi patenteado o primeiro copo menstrual. Apesar de ter as mesmas vantagens em termos de conforto e discrição foi um falhanço comercial. Só foi resgatado da obscuridade no final do século XX, quando a preocupação pelo ambiente levou à procura de alternativas reutilizáveis de produtos descartáveis. Um único copo de silicone substitui cerca de 264 produtos de higiene íntima por ano, com uma vida útil de 5 a 10 anos.

A produção e distribuição dos copos tem menor impacto ambiental. Em média, os tampões necessários a uma mulher durante um ano têm uma pegada de 5,26 kg de CO2; um copo menstrual, para o mesmo período, fica-se pelos 0,04 kg de CO2. A sua longa vida útil permite uma grande redução dos resíduos sólidos criados pela menstruação. Os tampões de algodão podem ser compostados, mas os produtos com plástico não podem ser reutilizados, e o seu melhor destino é a valorização energética.

Apesar de reduzirem a pegada ambiental da menstruação, muitas mulheres ainda os vêem com desconfiança. Para além de uma íngreme curva de aprendizagem, copos menstruais precisam de ser enxaguados entre cada uso, e esterilizados entre cada ciclo. Nem sempre é possível ter condições de higiene e privacidade para os enxaguar no dia-a-dia, e em zonas carenciadas é difícil esterilizar e conservar os copos de maneira higiénica.

A nível pessoal, além de substituírem despesas mensais por uma única compra a cada 5 anos, são considerados mais seguros. Enquanto os tampões absorvem sangue e muco, afetando a mucosa vaginal, os copos apenas recolhem fluxo, sendo menos abrasivos.

Cada mulher tem os seus hábitos íntimos, sendo difícil e desconfortável alterá-los. Porém, todos os anos surgem novos produtos que podem melhorar a nossa qualidade de vida, e ter uma mentalidade curiosa e aberta a inovação pode não só ajudar-nos a nós próprias como também o mundo.

Texto: Ana Santos - 4º ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | A problemática das beatas

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Em Portugal, a cada minuto 7000 beatas são lançadas ao chão. O seu tempo de degradação varia entre 18 meses e 10 anos, dependendo das condições do meio. Constituem assim um dos detritos mais abundantes no mundo.

Os filtros foram introduzidos nos cigarros durante os anos 50, após se ter descoberto que a combustão do tabaco liberta centenas de substâncias tóxicas, entre as quais alcatrão e metais pesados, numa tentativa de impedir que estas fossem consumidas pelos fumadores, estratégia que se revelou pouco eficiente. Essas substâncias ficam impregnadas nos filtros dos cigarros.

Ao contrário do que parece, o material leve e fibroso não é constituído por algodão, nem por qualquer outra fibra vegetal. É, no fundo, uma forma de plástico - acetato de celulose - cuja decomposição é muito lenta. Sendo leves e móveis, entram facilmente nas vias de águas pluviais, através das sarjetas, tento entrada direta nos rios e oceanos, dado que as águas das sarjetas não são tratadas convenientemente. Assim, torna-se claro que estes produtos, para além de não serem biodegradáveis, são também facilmente confundidos com alimento e ingeridos por diversos animais. 

Não é moralmente aceitável que detritos como garrafas de água ou pequenas embalagens sejam vulgarmente deitados ao chão, mas é “natural” que as beatas sejam despejadas arbitrariamente.

As pontas de cigarro são dos resíduos mais encontrados nas praias do sul da Europa e nos centros urbanos, não certamente devido à falta de baldes do lixo, mas sim por má atuação  e negligência das pessoas. 

Estamos perante uma questão complexa e transversal a várias áreas como a política, o ambiente, a saúde e a educação, cuja resposta é simples: tratar as beatas como qualquer outro resíduo e depositá-las nos locais adequados.


Texto: Henrique Melo - 2º ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | A moda do eco-friendly

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Pode parecer algo estranho, mas já houve um tempo em que o plástico não era uma constante do dia-a-dia, e as pessoas viviam bem com isso. O mais curioso de tudo é que nesse tempo a natureza não era um assunto que preocupasse muita gente, porque, afinal, ela sempre tinha existido e não parecia possível arruinar o ecossistema de um planeta.

Já hoje em dia, parece que vivemos num universo paralelo. O plástico tornou-se quase indispensável no nosso quotidiano (tendo salvo a vida a alguns milhares de animais que veriam os seus chifres decepados se não fosse a milagrosa, mas vil baquelite), mas ao mesmo tempo tomámos consciência do perigo que corre o nosso planeta e, em concreto, a natureza, mãe de todos os seres vivos.

Esta realidade assustadora e, sobretudo, consciencializadora permitiu uma mudança de hábitos e o aparecimento de alternativas para algo tão banal como palhinhas ou escovas de dentes. No entanto, a par das alternativas sustentáveis desenvolvidas por uns, surgiram também problemáticas como o “oportunismo sustentável”, isto é, empresas que através marketing passam ao consumidor uma imagem eco-friendly que em nada tem a ver com a realidade. Este oportunismo, tal como tudo hoje em dia, tem um nome: Greenwashing, para o qual até já existe uma entrada de wikipédia e um guia (1) que nos ajuda a detetar estes esquemas corporativos ou governamentais.

Apesar de este ser um problema sério, a sustentabilidade tornou-se também numa moda, o que tem efeitos positivos, mas também negativos. Reutilizar, por princípio, é algo positivo e ecologicamente sustentável. No entanto, no caso dos copos, garrafas ou sacos de plástico, para estes serem reutilizáveis necessitam de plástico mais resistente, logo a sustentabilidade destes objetos residirá no número de vezes que forem efetivamente reutilizados, porque a não reutilização dos mesmos poderá até aumentar o consumo de plástico. Um exemplo claro disso são os sacos de plástico que, segundo uma investigadora do Scripps Institution of Oceanography, podem vir a ser banidos das zonas costeiras por perigo de contaminação dos oceanos. Nas restantes zonas irão depender da sua reutilização, visto que as alternativas, no que toca a plástico biodegradável, por exemplo, continuarão a ser menos sustentáveis se não forem reutilizados vezes suficientes. (2)

Como tal, antes de ser apenas uma moda ou uma mania passageira a sustentabilidade deve sobretudo ser um ato de consciência individual e da sociedade.

(1)https://web.archive.org/web/20140513153230/http://www.futerra.co.uk/downloads/Greenwash_Guide.pdf

(2) https://earther.gizmodo.com/are-reusable-bags-really-better-for-the-planet-1826567287

Texto: Santiago Ribeiro

Ilustração: Maria Diniz Cabrito - 2º ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | O Negacionismo

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Em 1999, o político Thabo Mbeki foi eleito presidente da África do Sul. Ao longo da sua presidência de 8 anos, instituiu medidas que negaram o tratamento de doentes HIV+ com fármacos antirretrovirais, incluindo a substituição destes por medicamentos herbais como alho e beterraba, e a retirada de apoios a clínicas que ofereciam AZT a grávidas seropositivas. Fundamentaram estas medidas no negacionismo de que o vírus HIV causava SIDA e estima-se que estas políticas tenham sido responsáveis pela morte evitável de até 365.000 pessoas por HIV/SIDA.

O negacionismo científico pode ter consequências reais e até fatais.  Em 2009, o econometrista Pascal Diethelm e o médico Martin McKee, baseando-se no trabalho dos irmãos Mark e Chris Hoofnagle sobre o negacionismo, publicaram o artigo “Denialism: what is it and how should scientists respond?”, em que ofereceram este mesmo exemplo e definiram as suas 5 características:

  • Teorias da conspiração – a crença de que os cientistas não estudam fenómenos de forma independente, a revisão por pares é uma ferramenta de suprimir dissidentes e a existência de conclusões idênticas é sinal de conluios secretos.

  • Falsos experts – indivíduos que se afirmam como especialistas, mas cujas visões são completamente inconsistentes com a evidência pré-estabelecida.

  • Seletividade (cherry-picking) – a seleção isolada de artigos que comprovam a tese, ignorando o resto do corpo de evidência.exemplo: a utilização do artigo de Wakefield

    como prova da correlação entre vacinas e autismo).

  • Expectativas impossíveis – mais especificamente, expectativas e exigências desproporcionadas relativamente à evidência (exemplo: indicar a falta de

    confiabilidade de registos de temperaturas antes da invenção do termómetro).

  • Falácias lógicas – o uso de homens de palhas, falsas dicotomias e outros mecanismos de dar a volta ao debate.

Este modelo foi reforçado pelo geólogo James Powell e pelo climatólogo Michael Mann, que propôs seis passos para o negacionismo climático:

  • Os níveis de CO2 não estão a aumentar.

  • E mesmo que estejam, não haverá impacto sobre o clima porque não há evidência convincente de aquecimento.

  • E mesmo que haja, as causas do aquecimento são naturais.

  • E mesmo que não sejam, o impacto humano é negligenciável e o efeito das emissões de gases de estufa será diminuto.

  • E mesmo que não seja, as alterações climáticas serão vantajosas para nós.

  • E mesmo que não sejam, os humanos são muito bons a adaptar-se. Além disso, é tarde demais para mudar o que quer que seja e uma inovação tecnológica vai salvar-nos, eventualmente, quando for mesmo preciso.

É difícil refutar estas posições, não pela falta de evidência sólida, mas pela psicologia do negacionismo. Podes descobrir mais sobre os argumentos usados pelos negacionistas no website do Governor’s Office of Planning and Research do Estado da Califórnia, que os recolheu e lhes responde citando, entre outros, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas e a NASA: http://opr.ca.gov/facts/common-denier-arguments.html

Texto: António Velha - 4º ano

Ilustração: Ricardo Sá - 5º ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | A Geração Z precisa de um plano Z

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A geração Z saiu à rua para exigir que o mundo não acabe com os Millennials. Nascida nos finais dos anos 90, é a filha pragmática e realista da Internet, confortavelmente em constante crise de identidade. Não sobrevive sem os seus gadgets e está online 24 sobre 24 horas, contudo sonha com o passeio idílico no bosque ao som do cântico dos passarinhos. Será a feroz advocacia pelo ambiente fruto de um medo sério e verdadeiro da extinção? 

Seria perfeitamente aceitável, já que qualquer um com acesso a fontes de informação fidedignas encontra facilmente a prova irrefutável que justifica esta preocupação: a terceira lei de Newton. Há mais de 350 mil anos que os seres humanos exercem uma força na Terra e a Terra exerce uma força nos seres humanos. Como a massa de toda a humanidade é muito inferior à do planeta, a aceleração da nossa decadência é muito superior. Não é ambientalismo, é física. Da mais simples que há. E a espécie humana é a primeira parcela da equação. Que ingrato plano Z! 

  E que ingrata geração Z! Esta última tendência da sociedade é o topo de uma cadeia evolutiva. Esta decorre de um longo caminho percorrido passo a passo pela humanidade, desde a revolução agrícola do Neolítico à Revolução Industrial. Durante este período ocorreu um aumento populacional sem precedentes, originando os ancestrais de muitos destes Z e possibilitando a chegada da sua amada era da informação. Em 2020, serão eles os principais consumidores, caracterizando-se por gostar de analisar e avaliar todas as opções antes de comprar ou usar um serviço, de preferência através das redes sociais. E porque não, quando nunca antes existiu tanto por onde escolher e a definição da identidade nunca dependeu tanto da personalização do produto, ou não seriam estes os dias para quem quer influenciar e deixar-se ser influenciado. A moda de hoje passa por beber leite de coco e comer tofu, uma vez que as importações não deixam pegada ecológica ou já crescem cocos em Portugal e eu não sabia. 

É difícil no meio da actual inércia de medidas concretas saber se o ativismo vai para além da greve e da dieta. Para que todos (e todos, é mesmo todos os seres viventes que habitam nesta Terra) tenhamos futuro, talvez seja necessário cada um de nós poupar nas aspirações, reduzir o ter e reciclar o ser. Na ausência de alternativas viáveis que cheguem aos quatro cantos do planeta, medidas tão apregoadas como cortar imediatamente na eletricidade, no plástico ou no carvão, é suspender o potencial da evolução humana, sobretudo para os países em vias de desenvolvimento, atendendo a que grande parte dos serviços, da indústria e do sector primário, dependem enormemente destes recursos. 

Enfim, o radicalismo ambiental significaria recuar décadas no tempo apenas com a memória do que já fomos e o sonho do que poderíamos vir a ser. Mas será que a Geração Z troca todo o conforto em que nasceu em nome do planeta? E o que será do destino da humanidade quando esta esquecer o seu desejo natural de ter mais, de aspirar a ser mais? Afinal, dizem que a geração Z são a geração que faz acontecer. E se para eles não acontecer... nada?


Texto: Ana Sofia Mota - 6ª ano

Ilustração: Pedro Nuno Fava - 2ª ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | Refugiados climáticos

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O ano é 2050, e 250 milhões de migrantes vagueiam pela Terra à procura de uma nova “casa”, um novo local que possam tornar seu. Desta vez, o culpado não é um ditador megalómano, direitos humanos inexistentes nem tão pouco um conflito bélico que se descontrolou. O verdadeiro “culpado” é o clima. Os recursos naturais são escassos, incluindo o mais importante: água potável. Os níveis crescentes da água do mar afogam localidade após localidade. Os fenómenos climáticos, antes previsíveis, são cada vez mais violentos.

O cenário distópico acima descrito parece longe da realidade, retirado de um livro de ficção científica ou de uma série. Porém, é muito real: em 2018, os fenómenos climáticos naturais forçaram a deslocação de mais de 17 milhões de pessoas para longe das suas habitações, muitas das quais não podem regressar. E, de acordo com as previsões da ONU, em cerca de 30 anos o número deverá aumentar 14 vezes.

Voltemos atrás no tempo. O ano é 2015, no auge da crise de refugiados, e o mundo é assoberbado pela problemática constante dos migrantes a entrar na Europa. Tráfico humano, travessias mortais através do Mediterrâneo, violações dos direitos mais fundamentais. E, ainda assim, o número de migrantes e refugiados a atravessarem as nossas fronteiras mal excedeu um milhão de pessoas. É difícil imaginar como é que conseguiríamos passar de um para 250 milhões de refugiados. 

Estará a sociedade moderna pronta para as migrações que as alterações climáticas acarretam? A resposta é ambígua, mas o caminho ainda é longo. Várias organizações alertam para problemas, incluindo a inexistência do estatuto de “refugiado climático” na lei, o que os torna invisíveis aos olhos da mesma. É também importante relembrar que esta situação iria afetar desproporcionalmente os mais pobres e com menos recursos, populações já em risco. 

A esperança não está perdida, mas temos de nos preparar para o pior. Se não conseguirmos impedir a catástrofe climática iminente, o mínimo que podemos fazer é acomodar as necessidades daqueles mais afetados pelas mesmas. 

Começamos a sentir cada vez mais os efeitos das alterações climáticas, e brevemente os nossos erros vão alcançar-nos e atingir-nos em força. Estamos também cada vez mais cientes dos possíveis cenários que nos esperam: alguns toleráveis, alguns apocalípticos. É nosso dever prepararmo-nos para qualquer possibilidade, sem deixar ninguém à sua sorte. 

Temos 31 anos. O relógio não para.

Texto: Maria Gouveia - 3ª ano

Ilustração: Ricardo Sá - 5ª ano

SEMANA DA SUSTENTABILIDADE | Poema

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5.000.000 de km2 de floresta

390.000.000.000 de árvores

Rodeiam 9 nações

É aqui que habita a maior biodiversidade do mundo

10% das espécies animais vivem nesta floresta tropical

17% de todo o CO2 retido em florestas está na Amazónia

 e...

É a Terra que sangra.

E no pulmão do Mundo há sangue cor-de-laranja.

O que outrora era verde agora é luz ardente.

Que aos poucos cede, à fome da gente.

 

E aos olhos de todos continuamos a procurar

Mais e mais terra para que possamos prosperar

E assim continuaremos até não haver mais ar para respirar

Mas é urgente parar!

Proteger quem nos protege a nós, e a única coisa que precisamos fazer

É arranjar alternativas para tentar manter

A Terra verde e azul

Texto: Carlos Santos - 6ª ano

Ilustração: Rita Sequeira - 3ª ano

PESCADOR DO TEMPO

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Solidão.

Um olhar gasto que vagueia nuvens de fumo,

Viciante, perigoso,

Numa agonia nostálgica.

Pescador,

Isolado das vozes e murmúrios do universo,

Diz-me o que pensas...

Os teus ombros carregam memórias,

As tuas mãos lembram histórias

De esforço impiedoso, em tempos perdidos.

Diz-me o que te afasta do barulho da multidão...

Será um amor perdido?

Romance proibido?

Delicados lábios rúbeos,

Madeixas reluzentes,

Uma pele suave beijada pelo sol?

Perdeste a tua oportunidade? Conta-me porquê...

Será a recordação dos teus companheiros destemidos,

Esquecidos nas noites de desordem temporal?

Conta-me vigorosas viagens de perigos incomparáveis

Que afastam a tua mente

Deste dia,

Deste momento.

Será o tormento da maré,

O chiar do vento

Que deixam o teu espírito voar,

Apoderar-se das partículas do ar?

Para onde vais?

Leva-me contigo...

Solidão.

Será esse também o meu futuro?

Conta-me os teus segredos,

Explica-me porque estás tão só, nesta tarde de verão.

Pescador,

Eu vejo no teu olhar,

Eu escuto na tua voz.

Pescaste a vida toda,

Mas agora não consegues pescar

O que realmente precisas,

O que mais desejas.

Pescador não pode pescar o tempo.

Texto: Bruna Paulino Alves - 2º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

A cultura do desperdício no século XXI

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Manhã de domingo, um dia de sol e calor na cidade do Porto.

Pós-jogo na Rua O Primeiro de Janeiro, rua à qual o Estádio do Bessa chama casa.

Entre ir do ginásio a casa de carro, ou desfrutar do pedacinho de verão a meio de Maio, aprontamo-nos para caminhar 10 minutos até casa.

Ao som de Joy Division, com as caras suadas e as pernas moídas, percorremos a rua e, apercebemos ao longe uma sombra deambulando pela estrada. Aproximamo-nos. De perto, a sombra toma a forma de um saco do lixo abandonado. Infelizmente, visto ser tão comum, ignorar é o primeiro instinto. Não seria um dia vulgar, se ao vaguear pelas ruas não se se deparasse com uma garrafa de plástico no chão, um papel de embrulho, um pacote de cigarros... Já nem parece depravado, é só mais um dia numa cidade portuguesa.

A minha reflexão é interrompida pelo movimento brusco da minha irmã a dirigir-se em direção ao saco e querer colocá-lo no lixo. Pelo menos nela, o instinto passou a ação.

Num flash, passa pela minha mente uma publicação que tinha visto dias antes.

Um colega que resolveu passar à ação: deixar discursos bonitos de parte e pôr “as mãos na massa”. Depois de um dia de aulas, decidiu tornar um caminho rotineiro, num pequeno passo em direção à mudança. Tomou uma atitude que não implicou nada mais do que tempo e determinou-se a recolher tudo o que era resíduo do chão, entre a escola e sua casa. Chegou ao final de um percurso de 10 minutos com 3 sacos de lixo industriais cheios de detritos abandonados à mercê da degradação indeterminada. Numa perspetiva de alastrar o valor de responsabilidade ecológica, e de fomentar mais comportamentos similares, partilhou nas redes sociais os seus resultados.

A publicação ficou-me na memória, e a inspiração passou.

Conseguiu cumprir o seu objetivo.

Fez-me entender que por mais que nos queixemos da falta de políticas económico-sociais desenvolvidas pelo governo no âmbito de proteção ambiental, as palavras não bastam (e o propósito da sua repetição até é questionável). Temos de ativamente participar para salvaguardar a subsistência do ambiente.

Nós próprios, com as nossas duas mãos, dispensando de 10 minutos no meio de 1440 do nosso dia, podemos reduzir o lixo das ruas, impedindo que atinja os oceanos, promovendo também a higiene e o aspeto estético das nossas cidades.

Então porque não nós as duas neste pequeno trajeto? Porque não aproveitar este saco que já encontrámos e utilizá-lo para recolhermos alguns plásticos que encontremos?  Decisão tomada, missão adotada.

Rapidamente um saco deixou de chegar, e ao encontrarmos um saco de compras no meio da estrada, começámos a separar o que eram beatas de cigarros, de tudo o que era plástico, para mais à frente separar e reciclar.

Num dia de pós-jogo, a rua estava recoberta de restos de humanidade festiva. Sejam plásticos de chiclete, pacotes de cigarros, batatas fritas, latas de refrigerantes e cerveja ou embalagens de refeições já preparadas. O resultado final foi este: três sacos cheios, uma rua um pedacinho mais limpa, e dois sorrisos. E que aventura. As sensações viajam entre a vergonha, o cansaço, a determinação, o bem-estar, o orgulho a frustração, a raiva, o desgosto. Andámos vergadas a apanhar coisas putrefactas enquanto outros passam por nós intrigados. Aparecem as cãimbras nas costas e nos joelhos. Reparamos na quantidade que já retirámos das ruas. Enche-se um saco, uma quantidade razoável, e sem dúvida a diferença já fizemos. Mas queremos mais. Queremos limpar a rua inteira, e aqui já não importa quem passe por nós, ou os seus julgamentos. Sabemos que estamos a fazer a coisa certa, e pode ser que uma destas pessoas que se cruze conosco ganhe coragem para fazer o mesmo. Enchemos o terceiro saco, apercebemos-nos do ponto ridículo ao qual o egoísmo, o egocentrismo, a indiferença chegaram.

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A altura chegou de valorizarmos a expressão “Ações falam mais alto que palavras.” Desprezar, descartar, ignorar não pode ser aceitável.  O nosso processamento tem ir além do nulo: já nem nos apercebemos, nem sequer integramos a informação. Mas o que é facto é que, se todos nós deitássemos igualmente garrafas de plástico no chão, invólucros de bolachas, flyers publicitários para o chão, neste momento estaríamos soterrados em tralha inútil, sem significado, sabotando a existência uns dos outros. “Eu só deixei cair um papel, um não faz diferença. Querias o quê? Me baixasse para o apanhar?”. E é gente assim que habita o planeta em 2019.

E no fundo o que é que custa? Seremos assim tão sedentários e preguiçosos que não podemos aguentar com o lixo na mão até encontrar um caixote? A preguiça e o facilitismo são sem dúvida dois traços característicos da nossa sociedade atual. Não estará na altura de olharmos para os nossos umbigos numa perspetiva de melhorar? De sermos adultos, aceitarmos os nossos erros passados e tomarmos as críticas de forma construtiva?  Vemos constantemente conquistas de outros diante dos nossos olhos e congratulamos, quase sentimos orgulho pelas resoluções dos outros, as nossas ânsias apaziguam-se por poucos momentos. Esquecemos é que de nada serve, ficar à espera que outros façam por nós.

Ora, caros leitores, uma coisa é certa: as nossas mãos são do tamanho que nós queiramos que elas sejam. E sendo assim, termino com um desafio. Que todos os que me acompanharam neste devaneio se aventurem e se determinem a fazer de uma caminhada da Faculdade até casa, uma coisa proveitosa.

Porque se queremos que alguma vez os nossos netos e bisnetos pisem esta terra, teremos de recolher muito lixo do caminho.

Catarina Cardoso, 2º ano

Médicos ou Políticos - Qual a melhor solução para a gestão de um sistema de saúde?

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Na Grande Reportagem da XXIX edição da revista RESSONÂNCIA, debruçámo-nos fundamentalmente sobre o financiamento dos sistemas de saúde. Agora, daremos continuação à discussão do tema, dedicando mais atenção à sua gestão e organização.

O SISTEMA DE SAÚDE PERFEITO?

Continuamos sem resposta para a pergunta “Qual é o melhor sistema de saúde?”. O Euro Health Consumer Index (EHCI) 2017 apresentou como título da sua nota introdutória “Sem sinais de um modelo-padrão de saúde europeu... e talvez isso seja algo positivo?”. Determinar o melhor sistema de saúde do mundo é tarefa impossível, na medida em que a seriação dos países sob a forma de ranking depende dos parâmetros que decidirmos avaliar e da ponderação que atribuirmos a cada um. Mesmo que fosse possível determiná-lo, seria necessário muito cuidado na transposição acrítica de conclusões para a realidade portuguesa. Cada país possui um contexto sócio-económico-cultural específico e, ao invés da uniformização, devemos procurar a individualização e personalização das políticas de saúde a cada um.

Porém, isto não implica que não podemos aprender com outros países e introduzir no nosso sistema alguns dos aspetos que são consensualmente tidos como contribuidores para o sucesso de alguns modelos de gestão de saúde. Existem vários relatórios de rankings (como é exemplo o EHCI) que, apesar de terem um valor relativo, nos permitem comparar o nosso Sistema Nacional de Saúde (SNS)  com outros sistemas estrangeiros que estão sistematicamente melhor pontuados e nos apresentam as explicações mais claras para esses resultados. A edificação, gestão e remodelação de um sistema de saúde devem seguir a melhor evidência disponível, sendo evitáveis discussões que se cinjam a argumentos de cunho ideológico ou que não tenham sustentação empírica.

O EHCI é considerado como uma avaliação altamente credível dos sistemas de saúde europeus, afirmando medir não o melhor sistema de saúde em si, mas aquele que é mais consumer friendly. Avalia seis parâmetros: direitos dos utentes e informação; acessibilidade (incluindo os tempos de espera para tratamento); outcomes; alcance dos serviços fornecidos; prevenção; e fármacos. Dada a robustez e pertinência deste ranking, vejamos em maior detalhe as suas conclusões.

No cômputo geral, o EHCI conclui que os sistemas Beveridge apresentam melhores outcomes e operacionalidade em pequenos países, como a Islândia, Dinamarca e Noruega. Os sistemas Bismarck tendem a surgir no topo do índice, enquanto que os sistemas Beveridge de países com populações elevadas surgem no meio da lista.

Em maior detalhe, o EHCI 2017 atribuiu os primeiros cinco lugares gerais nestas categorias aos seguintes países: Holanda, Suíça, Dinamarca, Noruega e Finlândia (por ordem decrescente). A Holanda destaca-se por ocupar o top 3 do ranking desde 2005 e ter surgido na primeira posição até 2017 (no EHCI 2018, a Suíça passa a ocupá-la). Por outro lado, Portugal surge na 14.ª posição neste ranking.

QUAL É O SEGREDO DO SISTEMA DE SAÚDE HOLANDÊS?

Vejamos brevemente o sistema de saúde holandês. É caracterizado por múltiplos fornecedores de seguros de saúde maioritariamente privados, sem fins lucrativos e em competição, separados dos hospitais e prestadores de serviços, também privados e sem fins lucrativos, sendo os cidadãos obrigados a ter um seguro de saúde. Estas entidades podem apenas recolher lucro sob a forma de suplementos, são altamente reguladas e não podem rejeitar doentes, fornecendo o Estado suplementos a indivíduos com condições crónicas ou de elevado risco, que de outro modo não teriam acesso a cuidados de saúde.

No entanto, apesar desta arquitetura financeira, o EHCI sugere que no cerne deste ranking está o facto de as decisões operativas de saúde serem tomadas, em elevado grau, pelos profissionais de saúde, com o consentimento e informação do utente e de serem relativamente independentes dos políticos, dos burocratas e das agências financiadoras.

Por outro lado, um dos principais problemas do sistema holandês é a sobreutilização do inpatient care (tratamento que requer admissão hospitalar). Neste aspeto, Portugal é o segundo país com menor percentagem, um dado positivo que indica que os procedimentos são tendencialmente menos invasivos e há menos complicações dos mesmos.

Perante as notórias discrepâncias entre os sistemas de saúde holandês e português, e tomando por base o relatório Um Futuro para a Saúde, da Fundação Calouste Gulbenkian, decidimos enumerar seis principais fatores que carecem de abordagem e correção mais urgente, bem como algumas propostas nesse sentido.

1. POR UMA MAIOR SUSTENTABILIDADE DO SISTEMA DE SAÚDE

Atualmente, Portugal vive um período de instabilidade no que toca à gestão e financiamento dos serviços de saúde. Estima-se que a dívida do SNS a fornecedores, prestadores de serviços e credores tenha ascendido aos 2,9 mil milhões de euros. Simultaneamente, o subfinanciamento do SNS, a burocracia e a elevada centralização de poderes de gestão têm impedido uma alocação racional dos recursos e ajustada às necessidades dos doentes e utilizadores dos serviços de saúde.

Várias tendências futuras, como o aumento da população envelhecida (com pluripatologias e polimedicada) e da prevalência de doenças crónicas (como a diabetes, as doenças cardiovasculares ou as doenças oncológicas), constituem um peso crescente para a sustentabilidade do sistema.

Para garantir a mesma, será necessário:

  • Promoção de uma população saudável, consolidando a resiliência e robustez dos indivíduos, comunidades e sociedade em geral, e admitindo a centralidade da promoção e proteção da saúde como forma de evitar o recurso aos cuidados de saúde por doença;

  • Redução da morbilidade, particularmente a que se encontra associada às doenças crónicas;

  • Procura de melhoria contínua da qualidade com base na melhor evidência;

  • Promoção de redes sólidas de cuidados de saúde informais, nomeadamente famílias, vizinhos e comunidades;

  • Conceção de um sistema de cuidados de saúde centrado nas pessoas, eficiente e adequado aos objetivos;

  • Garantia da alocação de recursos humanos adequados, qualificados e que trabalhem em equipa;

  • Desenvolvimento de um enquadramento regulador flexível, eficiente e descentralizado para novos equipamentos médicos, terapêuticas e práticas médicas, na medida em que a regulação no seu estado atual é vista como consumidora de recursos, ineficiente, burocrática e castradora da inovação.

2. POR UM MAIOR EMPODERAMENTO DOS CIDADÃOS EM MATÉRIA DE SAÚDE

Uma melhoria nos cuidados de saúde e nos outcomes em saúde passará, primariamente, pelo aumento da participação ativa dos cidadãos e de todos os setores da sociedade. É premente que os doentes e pacientes sejam empoderados, e que todos os cidadãos possam ser co-produtores de saúde. Há que subverter a visão paternalista da Medicina e do Estado, bem como à atitude passiva que se desenvolveu nas relações entre estas entidades - possivelmente um resultado da elevada sotisficação e complexidade da Medicina e dos sistemas de saúde, intimidando e afastando cidadãos mais leigos.

Neste sentido, há que incentivar o autocuidado, a autonomia na realização de escolhas e a educação e literacia em saúde. As intervenções a estes níveis passarão por:

  • Disponibilização e posse de informação pessoal sobre a saúde (registo eletrónico);

  • Acesso a informação sobre a qualidade e os custos dos serviços de saúde, com envolvimento ativo na tomada de decisão médica;

  • Realização de programas de literacia em saúde;

  • Promoção de iniciativas concertadas dos cidadãos, sociedade em geral e profissionais de saúde;

  • Representação dos cidadãos em órgãos de gestão de instituições de saúde.

Os paradigmas em saúde estão a mudar e não há como ignorar a tendência para a Medicina personalizada, humanista, centrada no doente e baseada em equipas multidisciplinares de profissionais.

3. POR UM SISTEMA DE PRESTAÇÃO E GESTÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE DESCENTRALIZADO E REGIONALIZADO

Uma iniciativa com enormes retornos será a transmissão dos cuidados de saúde a entidades como as regiões, autarquias e sociedade civil em geral. Esta medida teria impactos positivos a vários níveis. Financeiramente, os cuidados de saúde informais poupam 7,5 milhões de euros ao nosso SNS todos os anos (tenhamos em conta que uma prestação pública e descentralizada de cuidados os torna mais flexíveis) e estima-se uma potencial redução dos gastos em custos administrativos na ordem dos 25% caso se aplicassem as seguintes medidas:

  • Promoção da responsabilidade local, delegando mais autoridade e competências nas organizações locais do SNS, propiciando uma redução de pesos desnecessários ou duplicados de regulamentação e de supervisão;

  • Transferência de financiamento das funções de supervisão e regulação para as entidades que apoiam a implementação e a prestação de serviços (supervisão de proximidade);

  • Aumento da responsabilização em todas as decisões clínicas e de gestão, com consequente melhoria dos processos de decisão, beneficiando assim o funcionamento e a eficiência de todo o sistema.

No fundo, esta alteração teria por base uma promoção dos profissionais de saúde como agentes da mudança e de melhoria, que passariam a desempenhar novos papéis, nomeadamente de gestão, assumindo um papel reforçado na organização dos seus serviços (detalharemos mais adiante este ponto).

4. POR UM SISTEMA DE SAÚDE BASEADO NOS RESULTADOS

Um sistema de saúde deve basear-se na procura continuada de melhoria da qualidade (segurança, eficácia, foco no doente, atendimento atempado, eficiência e equidade), apostando em serviços de tratamento precoce, sempre fundamentado namelhor evidência científica disponível, procurando atingir melhores outcomes e reduzir eventuais desperdícios. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, estima-se que 30-40% da despesa nacional em cuidados de saúde constitua desperdício e que mais de um ⅓ do mesmo se relacione com custos administrativos excessivos.

O EHCI propõe ainda, com base no caso holandês, sistemas de financiamento baseado na performance - performance-based financing (PBF) systems - nos quais os serviços recebem um valor orçamentado com base nos outcomes que apresentam. Com isto, seria evitada a inequidade que se verifica na distribuição dos recursos, com benefício dos hospitais urbanos (particularmente os universitários) e com prejuízo das unidades de cuidados nas regiões rurais e do interior do país.

5. POR UM SISTEMA PREPARADO PARA ENFRENTAR AS DOENÇAS CRÓNICAS

Outro ponto particularmente relevante é a incidência e a mortalidade pelas doenças crónicas de longa duração. Os números disponíveis para os países ocidentais de elevado rendimento sugerem que cerca de 5% dos doentes absorvem 40% dos recursos de cuidados de saúde, enquanto 10% absorvem mais de metade. No Reino Unido, por exemplo, 70% da despesa total em cuidados de saúde e cuidados sociais corresponde ao tratamento e aos cuidados de saúde de pessoas que sofrem de doenças de longa duração.

Estes custos irão exacerbar-se com o envelhecimento da população e o aumento da esperança média de vida, pelo que se torna urgente procurar soluções que zelem pela sustentabilidade financeira do SNS a este nível, tais como:

  • Introdução de novos mecanismos financeiros e de incentivos baseados nos resultados, promovendo uma maior custo-eficácia (como os PBF systems);

  • Criação e fortalecimento de redes de especialidades e de novos modelos de serviços que prestem cuidados de saúde integrados, domiciliários e de proximidade no âmbito das doenças crónicas;

  • Maior enfoque na prevenção e na promoção da saúde, ao invés da doença.

Em aparência, é mais fácil despender dinheiro a curto prazo para atuar sobre a patologia do que abordar a sua etiologia (por vezes, com causas socioeconómicas muito profundas). Contudo, vários estudos demonstram que a prevenção de várias doenças, particularmente as crónicas, é mais custo-efetiva que o tratamento das mesmas em fases avançadas.

6. POR UM SISTEMA MODERNO E QUE ABRACE AS NOVAS TECNOLOGIAS

Por fim, deve fazer-se uso de novas tecnologias e avanços científicos, tanto a nível da prática clínica como a nível organizacional, tais como os registos de saúde eletrónicos e o eHealth que, segundo o EHCI 2017, terá também contribuído para a excelente posição da Holanda. Eis algumas propostas a este nível:

  • Desenvolvimento do Registo de Saúde Eletrónico - registo integrado de todas as informações relacionadas com a saúde de um dado doente, podendo ser consultado e gerido por ele. Também reduz a burocracia e auxilia a prática médica, reunindo num local toda a história clínica do doente;

  • Utilização de telemóveis para monitorização e aconselhamento dos doentes;

  • Maior articulação entre o SNS e as unidades de investigação e produção científica, como forma de garantir que a inovação é mais rapidamente integrada nos serviços médicos.

Ainda assim, há que ter cuidado com o tecno-otimismo - a crença de que novas tecnologias solucionarão os problemas - e ter sempre em conta possíveis custos humanos e financeiros, bem como as consequências das mesmas.

OS CAMINHOS ADIANTE: COOPERATIVAS DE SAÚDE

Ultimamente, tem ganho notoriedade internacional o modelo de cooperativas de saúde (health cooperatives). As cooperativas representam um modelo de gestão preconiza a posse conjunta e democrática dos cuidados de saúde pelos trabalhadores, consumidores ou outras entidades envolvidas. Competem no mercado como qualquer outra empresa, mas não envolvem o pagamento de dividendos a acionistas, existindo um reinvestimento dos lucros na melhoria dos serviços e garantindo a sua sustentabilidade. Ao invés de existir uma preocupação com o aumento dos retornos financeiros a curto ou médio-prazo, procura-se um planeamento e sustentabilidade a longo-prazo.

O surgimento deste modelo de gestão baseia-se em três objetivos:

  • Aproximar profissionais de saúde e utilizadores no sentido de conciliar a oferta e a procura de serviços;

  • Gestão de custos e riscos partilhada;

  • Prestação da melhor qualidade possível de serviços.

Perante os já descritos fatores geradores de insustentabilidade dos sistemas, as cooperativas de saúde têm demonstrado a sua enorme capacidade de se adaptar mais rapidamente a novos contextos sociais, económicos, culturais ou etiológicos, assumindo formas diferentes perante estas condicionantes, e evoluindo em resposta a novos problemas. Têm a capacidade de agregar recursos para responder a falhas dos mercados e outros pontos de menor qualidade, como inacessibilidade ou ausência de certos serviços ou produtos, e a prestação de cuidados grupos que poderiam ser, de outra forma, excluídos.

A responsabilidade pela sua gestão pode ser feita de várias formas:

  • Cooperativas de trabalhadores (médicos, enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais de saúde), com o objetivo de lhes permitir o controlo e gestão dos serviços, maior independência nas decisões clínicas e uma menor sujeição a pressões externas, nomeadamente de poderes administrativos centralizados (ex.: as cooperativas Asisa e Assistència Sanitària, em Espanha)

  • Cooperativas de produção, ao nível farmacêutico (ex.: em Espanha, Bélgica e Itália)

  • Cooperativas de utilizadores, que gerem serviços de auxílio perante dificuldades de acesso aos cuidados ou exclusão de determinados grupos (ex.: no Japão, Singapura e Canadá)

  • Cooperativas mistas, envolvendo múltiplas entidades (ex.: cooperativas sociais italianas, ou a cooperativa Scias em Espanha)

Segundo dados de 2016 das Nações Unidas, este modelo de gestão abrange 76 países, regista um total de 3300 cooperativas e mobiliza cerca  de 15 biliões de dólares. Segundo o The Cooperative Health Report, da autoria da IHCO (International Health Cooperative Organisation) e EURICSE (European Research Institute on Cooperative and Social Enterprises) em 2018, as cooperativas de saúde têm aumentado de importância nas últimas duas a três décadas em todos os países que as desenvolveram como reação à exigência crescente de serviços de saúde, que não estava a ser devidamente colmatada por parte das autoridades públicas.

Na prática, as cooperativas fornecem cuidados variados e extensos, produzindo simultaneamente outcomes positivos, como são exemplo as clínicas comunitárias do  Saskatchewan, Canadá, em que o envolvimento dos consumidores nos serviços de apoio domiciliário produziu um aumento da qualidade dos cuidados. Para mais exemplos, remetemos um relatório da Universidade de Saskatchewan, que pode ser consultado aqui.

CONCLUSÃO

Os cuidados de saúde são um dos traços definidores da era contemporânea. É extraordinária a forma como em cerca de 100 a 200 anos nos libertamos de tanta tragédia e ignorância nesta área e passámos a viver vidas melhores, mais longas e mais plenas. Com todo este avanço, veio também uma complexidade crescente na forma como estes cuidados são criados, administrados e financiados, pelo que esta faceta fundamental da vida atual parece agora intransigente para a maioria da população.

Para bem ou para mal, não existe uma forma perfeita de gerir esta complexidade. Devemos estar cientes daqueles que são os princípios e ideais norteadores da prestação dos cuidados de saúde e, perante estes, lutar por um sistema de qualidade, moderno, e capaz de fazer frente aos desafios do presente e do futuro. Lutar pela sustentabilidade e descentralização dos cuidados, para que os profissionais de saúde efetivem um verdadeiro e duradouro impacto nas suas comunidade. Lutar pela informação e empoderamento e dos cidadãos e dos doentes, para que tomem controlo dos seus destinos e se tornem membros ativos da sociedade civil.

Reforçamos, uma vez mais, a principal conclusão do EHCI 2017: a necessidade de remover os políticos e burocratas do processo operativo de tomada de decisão em saúde e devolvê-la aos médicos, gestores e profissionais de saúde no terreno, a nível local, permitindo que não só estes, mas também os doentes se tornem agentes na forma como os seus cuidados de saúde são administrados e fornecidos.

Para mais informações, recomendamos a consulta de forma aprofundada as fontes acima elencadas, que, apesar da sua extensão, primam pela sua excelente qualidade. Além destas, recomendamos as análises do Commonwealth Fund, os relatórios Health Systems in Transition e as revisões da OECD Reviews of Health Care Quality, consultáveis nos websites do Commonwealth Fund, do European Observatory on Health Systems and Policies, e da OECD, respetivamente.

Particularmente em relação à descentralização dos sistemas de saúde, dado ser um tópico de grande relevância mas de alguma complexidade, remetemos o seguinte relatório  do European Observatory on Health Systems and Policies, intitulado Decentralization in Healthcare, que explora de forma bastante completa e aprofundado este assunto, e pode ser consultado aqui.

Finalmente, deixamos um último recurso em complemento à Grande Reportagem, que enumera uma série de argumentos e contra-argumentos relativamente às várias formas de financiamento dos sistemas de saúde, consultável aqui.

BIBLIOGRAFIA

  1. Björnberg, A. (2018). Euro Health Consumer Index 2017. Stockholm: Health Consumer Powerhouse.

  2. Björnberg, A., Phang, A. Y. (2019). Euro Health Consumer Index 2018. Stockholm: Health Consumer Powerhouse.

  3. Crisp, L. et al (2014). Um Futuro para a Saúde. 1st ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

  4. Un.org (2018). Healthcare cooperatives: a reliable enterprise model for health and wellbeing. United Nations.

  5. Borzaga, C. et al (2018). Cooperative Health Report 2018. International Health Cooperative Organisation & Euricse.

  6. Leviten-Reid, C. (2009). The Role of Co-operatives in Health Care: National and International Perspectives. Saskatoon: Centre for the Study of Co-operatives, University of Saskatchewan.

  7. Saltman, R. B., Bankauskaite, V., Vrangbaek, K. (2007). Decentralization in Healthcare. Maidenhead: European Observatory on Health Systems and Policies Series.


António Velha, 3º ano

Vasco Lobo, 3º ano

PÁRA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO…

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“Aqui não há malucos, aqui há doentes... doentes da cabeça”

Uma das frases mais icónicas e que melhor resume o documentário de Jorge Pelicano.

“Pára-me de repente o pensamento” dá-nos a oportunidade de conhecer a realidade de um hospital psiquiátrico, longe dos clichés e extravagâncias de Hollywood. Trata-se de um retrato intímo da vivência diária dos doentes do Hospital Conde de Ferreira, que nos conduz numa viagem pela experiência da doença psiquiátrica, em particular o mundo interior da esquizofrenia, lado a lado com os doentes.

Ao longo deste documentário, temos o privilégio de ouvir os relatos e conhecer através da câmara do realizador a perspectiva de cada individuo sobre a vivência da sua doença, uma experiência pessoal e única, e a percepção sobre as enfermidades dos que o rodeiam, numa atitude de escuta e compreensão que gera uma dinâmica de apoio e solidariedade inestimável.

A incrível capacidade de transmitir a realidade, sem manipulações, onde muitos mitos sucubem à veracidade da lente perspicaz de Jorge Pelicano, torna este documentário uma valiosa referência para a desmistificação da doença mental.

Testemunhamos durante esta obra, a inestimável sabedoria dos doentes, com diálogos de uma profundidade largamente contrastável com as conversas dos dias de hoje, num ritmo calmo e atento, sem pressas nem segundas intenções. Vemos doentes que nos explicam a sua doença e auxiliam os demais residentes do Conde de Ferreira a compreenderem e aceitarem a sua própria aflição, numa atitude de estima e preocupação, longe do estigma implantado na sociedade portuguesa.

Em suma, experiencia-se um sentido de humanidade e empatia naquela que é uma experiência heterógenea.

E temos no centro desta nossa viagem um pintor e poeta da geração de Orpheu, Ângelo de Lima, interpretado pelo actor Miguel, ao torno do qual esta obra se desenvolve. Além de um grande artista, que captou as atenções do movimento modernista e em particular de Fernando Pessoa, temos um ser humano que viveu uma longa porção da sua idade adulta entre hospitais psiquiátricos.

Diagnosticado com esquizofrenia paranóide em tenra idade, cerca de 20 anos, Ângelo foi um dos mais famosos residentes do Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira, e mais tarde do Rilhafoles, posteriormente designado Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, onde viriam a falecer tanto Ângelo como o médico que o acompanhou e apelidou este hospital.

É a minha humilde opinião que o mais impactante soneto de Ângelo de Lima tenha sido o que deu nome a este documentário. Uma construção poética que nos conduz na alucinante jornada do pensamento deste artista e nos faz compreender a frase que o Dr Miguel Bombarda usou para a descrever: “O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio”.

“Pára-me de repente o Pensamento...

Como que de repente refreado

Na Douda correria em que levado...

Anda em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso... escrutador... atento

Como pára... um cavalo alucinado

Ante um abismo... ante seus pés rasgado

Pára... e fica... e demora-se um momento...

Vem trazido na douda correria

Pára à beira do abismo e se demora

E mergulha na noite, escura e fria

Um olhar d’Aço que na noute explora...

Mas a espora da dor seu flanco estria...

E ele galga... e prossegue... sob a espora”

Se lermos atentamente e nos deixarmos levar por estas palavras, quase conseguimos sentir a aflição do poeta, que perante a alucinante velocidade e descontrolo do seu pensamento, tem um período de breve acalmia rapidamente interrompida pelo continum sofredor do barulho da sua mente. Temos acesso a uma transmissão por via da arte da experiência de Ângelo com a doença que o assolou e que ele nos descreve nesta breve, mas profunda, composição.

É impossível chegar ao fim deste documentário e reter a mesma imagem do doente psiquiátrico que a indústria cinematográfica nos traz. É impossível ficar indiferente ao estigma e ao tratamento diferencial que damos às doenças psiquiátricas, à segregação que fazemos, consciente ou não.

Vemos um hospital isolado da cidade que o alberga, pelas suas altas grades, um remanescente da sua original arquitectura de 1883, mas que ainda hoje é um reflexo da visão comunitária do doente psiquiátrico.

Num país em que 1 em cada 5 portugueses sofre de uma doença de foro psiquiátrico, com a 2ª maior prevalência da União Europeia, torna-se ainda mais urgente desmistificar a doença mental.

O Estigma relacionado com a doença mental resulta maioritariamente do medo do desconhecido e de uma conjugação de falsas crenças e pressupostos, que geram ignorância e potenciam a incompreensão. É um fenómeno complexo profundamente enraizado na sociedade e responsável por atitudes e processos de marginalização e exclusão social. Quando as crenças negativas do estigma público são internalizadas pelo doente surge o auto-estigma, levando a uma perda de auto-estima e auto-desvalorização, que conduzem ao progressivo isolamento social, e que pioram o prognóstico destes doentes. Podemos constatar facilmente a existência dos mais variados estereótipos e conotações negativas atribuídos às afecções psiquiátricas, desde o doente sem sucesso ao doente violento e perigoso, desde o “maluco” ao instável sem cura.

E é aqui que o documentário de Jorge Pelicano poderá ser considerado uma autêntica obra de serviço público, de inegável importância na actualidade.

Uma obra que nos faz questionar o porquê das ideias pré-concebidas, dos estereótipos construídos em torno destes doentes, que nos levam a isolá-los em hospitais que criam o seu próprio “mundo” e se isolam do resto da cidade, que os isolam do mundo. Uma obra que desmistifica grande parte dos mitos e crenças, e contribui para a literacia do comum cidadão, para uma sociedade em que a doença mental não seja um tabu e muito menos uma vergonha ou uma origem de perigo.

A doença mental não existe num universo paralelo ao da doença física, não são duas realidades opostas, e ambas formam o continum necessário à saúde. E para que haja saúde plena é necessário integrar todos os indíviduos, respeitar e não estigmatizar.

Porque afinal de contas... “Aqui não há malucos, há doentes...”.

Maria H. Viegas, 3º ano

Ilustração por Eduarda Costa, 5º Ano

Michael Jackson - uma história de reis e deuses

Michael Jackson e Wade Robson ©HBO

Michael Jackson e Wade Robson ©HBO

Poetas dirão que um homem morre duas vezes: a primeira quando o seu corpo físico pára, a segunda quando a última pessoa que o conheceu dá o seu último suspiro. Certas (poucas) formas de perdurar além dessa lei incluem a arte e os feitos históricos, de modo que alguns atingem um estado de quase imortalidade, como Arquimedes, Júlio César ou Leonardo da Vinci. Com o tempo, Michael Jackson irá muito provavelmente juntar-se a eles.

Para a larguíssima maioria dos seres humanos nascidos entre as décadas de 70 e 90, a música de Jackson está, invariavelmente, integrada nas suas vidas, conjurando memórias de casamentos, discotecas e coreografias espontâneas em festas de Halloween. A voz era angelical, a dança era electrificante e o talento era inquestionável. Michael Jackson transcendia etnias, géneros, fronteiras e distâncias. Ser fã de Jackson era ser fã de um arranha-céus ou de uma corporação. Ou mesmo de um deus. No final dos anos 80 começaram as modificações corporais. Em 1993, a primeira criança falou.

Vi, há umas semanas, as quatro horas de Leaving Neverland. Para além das grotescas e minuciosas descrições de alegados actos sexuais, não há muito de especialmente revelador no documentário emitido em março pela HBO. Que Jackson era acompanhado por crianças que deviam estar na escola, e não misturadas com o jet-set internacional, era basicamente sabido e aceite por milhões de pessoas. Mesmo antes de clicar no play, sabia essencialmente o que iria ver. Há muito tempo que o público, dos fãs incondicionais aos apreciadores ocasionais, tem noção da sombra que envolve Jackson. O mundo, especialmente na América, conhecia a sua singular e heterodoxa auto-destruição há décadas. Simplesmente escolheu ignorá-la. Sobre o referido documentário, um jornal americano clamouNation in shock as documentary confirms everything they already knew about Michael Jackson’.

O problema é que ninguém quer o Michael Jackson de Leaving Neverland. Legiões de fãs afro-americanos aprenderam a compartimentalizá-lo quando viram a capa de Thriller, separando o génio dos facelifts, das rinoplastias e da pele cada vez mais clara. Simultaneamente, progenitores caucasianos deixaram-se encantar por uma alma gentil e infantil, o filho pródigo da América. O mesmo fascínio que levava pais a deixar os filhos menores dormir com o cantor, alegadamente cegos para abusos sexuais, era e é partilhado por milhões de pessoas, não tivesse Jackson abalado o mundo da música de uma forma que ainda hoje, 40 anos depois, soa revolucionária.

Contudo, as acusações também perduraram. Os testemunhos de Leaving Neverland são poderosos, gráficos e convincentes. Wade Robson e James Safechuck, na altura entre os 5-10 anos, descrevem a proximidade com o cantor como algo hipnótico. Ambos defenderam Jackson contra as alegações de 1993, retiradas depois de a vítima receber quase 25 milhões de dólares. Em 2003, novas acusações, ilibação total. Os próprios Robson e Safechuck viriam a processar Jackson, em 2013 e 2014, tendo os casos sido rejeitados por falta de provas. Jackson morreu há quase uma década, sem um único crime provado. A sua família definiu o documentário como linchamento público e processou a HBO. Um novo documentário, Investigating Neverland, conta a história do ponto de vista da sobrinha do cantor, Brandi Jackson, que manteve uma relação com Wade Robson durante sete anos, algo não referido em Leaving Neverland. Entre críticas aos acusadores e ao documentário original, como uma incongruência na timeline, admitida até pelo realizador, a polémica subsiste.

Apesar do terramoto internacional gerado por Leaving Neverland, uns minutos nas redes sociais mostram uma cisão monumental e diversa no público. Se há os que olham para o documentário como uma revelação chocante ou uma confirmação do esperado, há em igual medida todos aqueles que ou defendem a inocência do cantor, frisando a falta de provas, a volatilidade dos acusadores e as absolvições, ou afirmam que se interessam apenas pela música, ou ambos. Jackson mantém a sua influência mística: uma estrela não comete crimes.

No entanto, já não estamos em 1993 e Leaving Neverland coloca-nos um dilema moral enquadrado na era do #MeToo. Acreditando nas acusações, deveria haver algum tipo de consequência. Boicotar Jackson é sinalizar às suas vítimas que as ouvimos, que iremos deitar abaixo um falso ídolo. De facto, estaremos a apoiar todas as vítimas de crimes sexuais, a passar a mensagem de que o seu sofrimento é mais importante para nós do que as vidas dos seus agressores, mesmo que estes sejam tremendamente ricos, poderosos e talentosos. Não podemos processar Jackson mas podemos apagar as marcas da sua passagem na Terra, agir como se apenas o criminoso tivesse existido. Só que aí começa o desafio. Poderemos prejudicar o seu legado e apagá-lo da nossa consciência colectiva?

A vida e obra de Michael Jackson caminham de mãos dadas nos últimos 60 anos da História. Juntas, fizeram dele um fenómeno cultural de ramificações imensuráveis, muito para além da música. Na dança, Jackson foi um big bang, catapultando os estilos negros e passos obscuros, como o icónico moonwalk, para a ribalta, uma revolução em expansão ainda hoje. Da estrela cubana do ballet Carlos Acosta ao inspirador contemporâneo do asiático Akram Khan, a influência de Jackson foi imensa. Por muito que queiramos aplicar uma cancel culture, pura e simplesmente não existe um precedente para um cenário com a magnitude de Michael Jackson. Sim, estações de rádio na Nova Zelândia, no Reino Unido e no Canadá pararam de emitir a sua música; The Simpsons deixou de emitir o episódio com ele; estátuas têm sido destruídas e celebridades têm condenado o ídolo que outrora amaram. Ainda assim, mesmo que todos os serviços de streaming do mundo removessem as suas canções, continuariam a existir mais de 60 milhões de cópias físicas de Thriller espalhadas pelo globo. A própria existência de Jackson foi considerada um dos 80 momentos que moldaram o século XXI, juntamente com a world wide web, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou a bomba atómica. Desde que o documentário foi anunciado, vendas e streamings voltaram a aumentar. Michael Jackson é demasiado massivo para ser cancelado. Mas ouvi-lo não parece correcto.

Incapaz de castigar o músico, a consciência do planeta precisa de algum apaziguamento. Não podendo nunca vir a ter a certeza sobre o que se passou no rancho de Neverland, as questões permanecem: Deveremos deixar de o ouvir? Apreciar a sua música faz de nós más pessoas? Bom, rever os nossos sentimentos em relação a outros casos pode ser útil. Alegações de assédio, má conduta e crimes sexuais pairam sobre centenas de celebridades. Kevin Spacey e Harvey Weinstein são agora nomes tóxicos em Hollywood. Deveremos erradicar a popular série House of Cards ou o filme de culto Pulp Fiction? Ignorar os contributos de Bill Cosby e R. Kelly para a indústria? Eliminar Dustin Hoffman, Louis C.K., Casey Affleck ou Bryan Singer? Deveremos cancelar todos os filmes, séries, canções, musicais, sitcoms e espectáculos com eles relacionados? Dylan Farrow, a filha de Woody Allen, acusou o pai de a ter violado em 1992, quando ela tinha apenas 7 anos. Roman Polanski fugiu dos Estados Unidos depois de ter sido acusado de drogar e violar uma rapariga de 13 anos em 1977. Deverei deixar de considerar Annie Hall e The Pianist como dois dos melhores filmes que já vi e nunca mais sequer falar deles?

É verdade que cinema e música não são exactamente comparáveis. Um filme é muito mais do que o seu realizador ou protagonista, envolve a colaboração de variadíssimas artes, ao passo que uma canção se pode dever em larga medida a quem a canta. Mas um crime sexual é imperdoável, é sujo, é vil. Tudo aquilo e todos aqueles associados ao criminoso partilham da sujidade e da vileza, em maior ou menor medida. Então onde colocar a linha? Quanto é que um indivíduo precisa de estar envolvido num trabalho para que dele seja considerado indissociável? Onde é que deixa de ser conveniente para o nosso entretenimento e passa a irritar a nossa moral?

Deveremos ignorar a pluralidade de We Are the World ou o dueto com Paul McCartney? E o trabalho dos Jackson Five?  O veterano produtor Quincy Jones foi instrumental na criação de Off the Wall, Thriller e Bad. Descartamos as suas contribuições para o mundo da música? Onde fica Drake, que colocou Jackson de novo no topo ao incluir voz póstuma em Don’t Matter to Me? Onde ficam Muse, Lady Gaga, The Weeknd, Bruno Mars, Tame Impala, Justin Timberlake, Céline Dion, Chris Brown e centenas de outros artistas que são quem são porque Jackson os influenciou?

Depois de Leaving Neverland, a alma da música de Michael Jackson está conspurcada para sempre. Para muitos, para lá de qualquer redenção. Mas ele permanecerá embebido nas vidas de milhões de pessoas. O que sentirão daqui em diante é impossível definir e, francamente, é uma descoberta que cada um deve fazer por si. Vou arriscar e dizer que o mais provável é que ultrapassemos Leaving Neverland. Uma geração e o documentário será esquecido. Aconselho todos a vê-lo na mesma mas creio que a maioria, com o tempo, vai analisar os factos, contrapô-los com os seus sentimentos e decidir que consegue continuar a aproveitar a música de Jackson, ainda que possa nunca mais ouvir P.Y.T. (Pretty Young Thing) da mesma forma.

Mesmo as vítimas têm emoções contraditórias: ‘He helped me tremendously. He helped me with my career, he helped me with my creativity. And he also sexually abused me. For seven years.’ diz Robson no início do documentário. ‘He was one of the kindest, most gentle, caring, loving people I knew.’ acrescenta Safechuck. Isto é o aspecto mais extraordinário na vida de Jackson: tinha um lado que apenas podemos descrever como bom, ao mesmo tempo que era, provavelmente, um monstro. E isso é algo que a mente humana tem muita dificuldade em compreender. Talvez se vivêssemos numa sociedade onde a justice culture fosse tão voraz quanto a cancel culture, fosse mais simples separar as águas e entender a dualidade do ser humano.

Todavia, esta questão transcende Michael Jackson e denota um perigo emergente. Leaving Neverland deixa-nos com a preocupação de estarmos a contribuir para uma cultura de tolerância e silêncio para com o abuso sexual de cada vez que ligamos o rádio. Afinal de contas, o artista não existe sem o seu público. Bing Crosby era violento com os filhos mas todos os anos ouvimos White Christmas; histórias das indiscrições sexuais de bandas como The Beatles, The Rolling Stones, Led Zeppelin ou The Who não são difíceis de encontrar. Estaremos a entrar numa era em que um nicho da humanidade pode existir sem limitações? O mundo choca-se e pergunta-se como pôde permitir que Jackson atingisse um estatuto tão estratosférico que a sua marca no mundo se tornou permanente, ao mesmo tempo que endeusa figuras como Beyoncé, algo que até a própria fomenta.

A civilização humana é uma civilização intrinsecamente do espectáculo, atraída pelas câmaras, pela fama e pela ostentação como traças pela luz. O maior legado de Jackson é um exemplo sem paralelo de como a indústria do entretenimento prioriza o lucro acima do sofrimento e explora uma sociedade cega e alucinada que, em pleno século XXI, procura orientação e valores não numa universidade ou numa igreja mas num Coachella habitado por super-humanos que cantam e dançam.

José Durão, alumnus

O Netter É Arte?

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 Seria impossível sobrevalorizar a importância que o Atlas de Anatomia Humana, de Frank Henry Netter, teve para a formação de muitos de nós. As imagens minuciosas, detalhadamente legendadas, que permitiram a tantos uma compreensão mais clara e aprofundada da densa matéria que é a anatomia.

    Muito pensarão que será também possível defender este manual como uma obra de arte. Não apenas tecnicamente útil ou esteticamente bela, mas um feito artístico. Afinal de contas, como não? Tão sublimes as imagens, tão complexa a representação, tão brilhante o conteúdo.

    Brilhante, complexa, sublime? É razoável afirmá-lo. Mas arte?

    Em 1938, Robin George Collingwood publicou Os Princípios da Arte. Constituiu, na sua altura, um marco significativo para a teoria estética e, ao contrário do que seria de esperar, dedica boa parte desta obra a explorar o que não é arte.

    A arte não é uma forma de entretenimento, nem de magia (isto é, não visa despertar uma emoção predeterminada, como propaganda patriótica ou uma dança de guerra) mas, mais importante que isto, não é uma imitação ou representação. Collingwood argumenta que estas se encontram no domínio da técnica e que, ainda que uma obra de arte possa ser uma obra técnica, o contrário não é necessariamente verdade.

    Afirma que a arte se baseia na expressão de emoções, e que a identificação desta finalidade não pode ser separada da atividade artística, ao passo que numa técnica, a identificação da finalidade não depende do processo de produção (por exemplo, o sapato é identificado sem ser necessário recorrer à atividade de fabrico).

    Conclui que a genuína obra de arte reside na emoção do artista, e que a externalização é uma questão de técnica – por outras palavras, apenas uma obra onde o artista exprime as suas emoções é considerada arte.

    Posto isto, podemos concluir que Netter não foi nunca um artista, apesar de se identificar como tal, mas um mero ilustrador. As suas obras são, portanto, feitos técnicos magníficos com um enorme legado, mas não obras de arte. É uma conclusão razoável, mas talvez haja algo mais por trás disto.

    Permanecem várias questões: apesar de técnicas, Netter exprimiu emoções através das suas ilustrações? Será que via no corpo humano não apenas um objeto de representação, mas também uma fonte de inspiração? Qual era a sua motivação para desenhar?

    O próprio parece esclarecer-nos no prefácio da 1ª edição da sua seminal obra: “Clarificação de um assunto é o objetivo e finalidade da ilustração. Independentemente de quão maravilhosamente pintado, quão delicadamente e subtilmente realizado seja um assunto, é de pouco valor como ilustração médica se não for útil a tornar claro uma questão médica”.

    Estas citações parecem pender fortemente na direção da técnica ilustrativa, e não da arte. Netter mostra entender como o seu papel reside na representação da verdade tal como ela é, não da realidade como ela é percecionada ou muito menos na expressão das emoções que ela desperta em si. Ainda mais, reveste-se de uma função pragmática - a clarificação de assuntos médicos complexos.

    E, no entanto, muitos dos seus objetos de desenho não são exclusivamente as condições médicas, mas a pessoa com a condição médica. O próprio afirmava, frequentemente, que não somos máquinas que necessitam de manutenção, mas seres humanos. Particularmente os seus desenhos de crianças parecem exprimir uma profunda empatia pela vulnerabilidade destes pequenos.

    Que devemos, então, fazer de tudo isto? Não pretendo, com esta reflexão, expor apenas a minha opinião pessoal sobre o assunto, nem não pouco apresentá-la como a única resposta razoável a esta problemática.

    A arte é um tema complexo, sob o qual se debatem filósofos e artistas há muitos séculos. Collingwood propôs uma perspetiva relativamente atual e bem fundamentada sobre o assunto, mas tem os seus críticos. Se há algo que não há na filosofia é consenso e muitas outras opiniões sobre o assunto podem ser consideradas.

    Gostaria apenas de apelar à reflexão profunda sobre esta temática, e mostrar como a alma e as motivações do ser humano são, muitas vezes, mais complexas do que inicialmente ponderamos. Nunca poderemos verdadeiramente compreender o que ia na alma de Frank H. Netter, nem tão pouco assumir que se absteve totalmente de transpor as suas emoções para o papel.

    No entanto, as suas obras permanecem um dos grandes feitos da anatomia moderna e, sem sombra de dúvida, não pecam por ausência de beleza. Seja arte ou técnica, seremos capazes de reconhecer o estado de prazer que a contemplação das suas imagens despoleta.

    Exceto quando chega a hora de estudar anatomia.

Fontes consultadas:

  • Kenny, Anthony. A New History of Western Philosophy - Volume 4: Philosophy in the Modern World. Oxford University Press, 2008.

  • Frank, Netter H. Atlas of Human Anatomy. Elsevier, 2014.

  • Netter, Francine Mary, and Friedlaender, Gary E. “Frank H. Netter MD and a Brief History of Medical Illustration.” Clinical Orthopaedics and Related Research, U.S. National Library of Medicine, 17 Jan. 2014.

  • Dominiczak, Marek H. “An Artist Who Vastly Enriched Medical Education: Frank H. Netter.” Clinical Chemistry, Sept. 2013.

António Velha, 2º ano

Ilustração por Miguel Silvestre, 5º Ano

Pseudo-pleasure

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como as redes sociais afetam o nosso comportamento

Social media: forms of electronic communication through which users create online communities to share information, ideas, personal messages, and other content

Segunda-feira. Nove da manhã. Entro na enfermaria, enfrentando mais uma semana de aulas. Sento-me numa cadeira da sala de espera. Os corredores vão sendo lentamente ocupados por batas brancas; os utentes do hospital curiosos como sempre quando nos vêem. Observo os meus colegas cabisbaixos com telemóveis nas mãos, à espera dos respetivos assistentes. “É incrível”, penso, “como as pessoas são obcecadas com as redes sociais”. Volto a olhar para o meu telemóvel, leio os meus e-mails e notificações. Curioso como faço exatamente o mesmo que condeno, e nem me apercebo.

Lembram-se porque é que criaram a vossa conta de Facebook?

Há cerca de dez anos, numa viagem fora de Portugal, uma prima distante perguntou-me “Devias adicionar-me no Facebook. Sabes o que é?”. Depois de ter dito que não, ela explicou-me o conceito. Fiquei pasmada: eis uma ideia tão revolucionária, uma rede onde podíamos partilhar a nossa vida com pessoas que estão longe de nós. Quando voltei a casa, uns dias depois, sentei-me no escritório e passei uma tarde a criar e a aperfeiçoar a minha conta. Penso que fui das primeiras pessoas a criar uma conta no meu grupo de amigos, e por isso, durante algum tempo, tentei convencer todas as pessoas que conhecia a juntarem-se a esta nova rede social. Assim começou. E assim continuou durante anos.

Hoje, em contrapartida, é enorme a procura de soluções que bloqueiam aplicações viciantes como o Facebook e o Instagram. Confesso que já procurei diversas opções para bloquear o meu “screen time”, ou tempo de ecrã, sem grande efeito. Mas porque é que será tão difícil controlarmos a utilização destas aplicações?

Todos sabemos que as redes sociais foram desenhadas com objetivo de serem viciantes. Fazem-nos sentir a necessidade de verificarmos constantemente se alguém interagiu com nossa fotografia ou publicação, ou se o nosso colega já leu aquela mensagem que deixámos na conversa de grupo há umas horas.

Os criadores destas plataformas utilizam várias maneiras de atrair e manter a nossa atenção. Alguns exemplos são:

  • Endless scrolling, uma funcionalidade que faz com que continuemos a ver publicações de forma infindável. Esta estratégia não nos permite reagir aos nossos próprios impulsos, levando, por isso, a que passemos mais tempo simplesmente a fazer scroll.

  • Os likes e comentários, que criam uma sensação de comunidade e companheirismo, de forma a que nos sintamos validados com a interação com outros utilizadores.

  • Push notifications, juntamente com a cor vermelha das notificações (que contrasta com o azul ou branco de fundo), que estabelece uma certa urgência ao alerta e nos incentiva a verificar as nossas notificações.

Estas técnicas quasi-pavlovianas são relatadas por engenheiros e developers, que antigamente trabalhavam para empresas como o Facebook e a Google.

O ex-presidente do Facebook, Sean Parker, admitiu em 2017 que o principal intuito desta plataforma social é de atrair a população, com recurso a libertações de dopamina em resposta ao seu uso. Acrescenta ainda que “é um loop de feedback de validação social (…) porque estamos a explorar a vulnerabilidade da psicologia humana”.

Também Justin Rosenstein, o engenheiro do Facebook que inventou o “like”, descreve a sua criação como [“bright dings of pseudo-pleasure”].

Existe, em sobreposição, uma tendência de esboçar uma vida perfeita aos amigos e seguidores online. É muito fácil olhar para os nossos murais, cheios de publicações premeditadas e fotografias editadas, e questionarmo-nos porque é que nós não conseguimos viver assim. Ignorando completamente o facto de que as pessoas revelam online apenas uma versão filtrada de si mesmas. Os adolescentes, sendo o principal mercado destas plataformas, passam uma grande quantidade do seu tempo a idealizar e projetar uma imagem perfeita online. Será que estamos a instigar as pessoas a criar uma versão falsa online, em vez de as encorajarmos a aceitar a sua individualidade? E não estaremos nós próprios, inevitavelmente, a ficar dependentes da opinião dos outros para cada fotografia ou publicação que lançamos para o mundo virtual?

Apesar destas questões, decerto que a maior parte das pessoas crê que o seu uso das social media é moderado, e que não lhes causa dano significativo, argumentando ainda que estas plataformas permitem uma maior aproximação com os seus familiares distantes e amigos. É o meu caso.

Um estudo de 2018 refere que o uso excessivo de smartphones (e, infira-se, de social media) advém da necessidade humana de contacto e maior afinidade com os outros. Ainda relatam que apesar dos efeitos negativos do vício a redes sociais, o recurso às mesmas surge a partir de um mecanismo natural e evolutivo da espécie humana: a necessidade de vigiar o outro e ser vigiado em resposta.

Por fim, penso que é importante lembrarmos que todas as grandes revoluções tecnológicas foram alvos de fortes críticas. Tal como os telemóveis e computadores, também a televisão, os livros e a própria escrita foram, no seu tempo, vistos como inovações deletérias para o desenvolvimento da sociedade. Hoje, podemos afirmar precisamente o contrário; é indiscutível o avanço permitido por todas estas tecnologias, incluindo as mais recentes. E se uma geração interpreta o uso de redes sociais como sendo uma regressão da comunicação entre pessoas, uma outra geração, a nossa, floresce com o seu uso.

Nuzhat Abdurrachid, 5º ano

Ilustração por Susana Xu, 3º Ano

Existem terapeutas musicais?

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- Acho que vais gostar deste. – afirmou a minha mãe, entrando no meu quarto sem bater à porta (como sempre) e pousando um livro em cima da minha secretária.

Olhei para o livro, curiosa. Normalmente, quando a minha mãe me diz que vou gostar de um livro, acerta. Conheço a autora: Jodi Picoult. A escritora norte-americana tem-se tornado uma das minhas predileções mais recentes. Contudo, desconheço o título: Uma Melodia Inesperada.

- Depois quero saber o que achaste. – Continua à minha mãe, saindo do quarto tão depressa quanto entrou.

Não vou descrever aqui a história pormenorizada do livro (que recomendo), apenas comento que uma das personagens principais era terapeuta musical. Este conceito revelou-se uma novidade para mim. Existem terapeutas musicais?

Claro que é fácil acreditar que a música pode aliviar a ansiedade ou a tristeza ou o stress quando nós próprios já experimentámos isso. Quantos de nós não ouvimos músicas deprimentes quando estamos tristes porque sentimos que isso nos ajuda a lidar com a nossa tristeza? Ou colocamos música melancólica em viagens compridas de autocarro só para podermos olhar pela janela e pensar na vida? Ou ouvimos música animada em momentos mais aborrecidos para tentarmos levantar o nosso ânimo? Quem não ouve o Bailando e não pensa de imediato na Noite da Medicina e não dá por si a sorrir com isso?

No entanto, a ideia de existirem profissionais que se dirigiam aos hospitais e aos lares e às escolas para realizar terapias com música suscitava-me alguma confusão. Fui lendo o livro com interesse, acompanhando a terapeuta musical à medida que ela acompanhava um velhote catatónico num lar de idosos, uma adolescente deprimida e diversos recém-nascidos, ao mesmo tempo que me perguntava se esta nova prática teria muita adesão nos Estados Unidos da América.

O livro descreve particularmente bem a interação entre a terapeuta musical e uma adolescente deprimida; a forma como a personagem utiliza a música para interagir com uma rapariga que se isolou de tudo e de todos, como utiliza diversos instrumentos para que ela se possa expressar ou simplesmente libertar toda a frustração que existe dentro dela e como, aos poucos, a rapariga começa a ver aquelas sessões como um escape e não como uma obrigação.

Quando recebi o email com o novo desafio proposto pela Ressonância, decidi naquele momento que iria pesquisar sobre este assunto.

A musicoterapia define-se como o uso clínico da música por um musicoterapeuta certificado para auxiliar os pacientes a alcançarem determinados objetivos individuais que incluem o alívio e controlo da dor, diminuição de sintomas de depressão e ansiedade, promover a reabilitação motora, a comunicação e o desenvolvimento cognitivo, entre outros.[1]  A musicoterapia inclui diversas atividades tais como composição de letras e de músicas, cantar, improvisar, aprender a tocar um novo instrumento, escutar simplesmente, analisar e discutir letras e até “tocar a fingir”. As sessões de musicoterapia são mais frequentemente individuais (apesar de também poderem ser em grupo), pois o objetivo é que cada sessão seja o mais adaptada o possível ao indivíduo.[2]

Foi com espanto que descobri que existe mesmo uma World Federation of Music Therapy, criada em 1985, e um Dia da Musicoterapia que se celebrou a 1 de Março de 2018.[3] Descobri que a musicoterapia já é utilizada em locais tão diferentes como a África do Sul, a Austrália, o Canadá e a India e em populações tão diferentes como as crianças, os idosos e os doentes psiquiátricos.

Todavia, uma dúvida essencial não deixava a minha mente: Funciona?

Novamente, voltei á minha pesquisa e descobri resultados muito interessantes…

  1. Comunicação funcional – A musicoterapia tem-se revelado particularmente eficaz em promover a comunicação em pessoas profundamente dementes (seja com Demência de Alzheimer ou outras demências). Crê-se que uma das explicações para isto é que a linguagem seja uma função adquirida mais recentemente pelo nosso cérebro, enquanto que a música e a comunicação não verbal são capacidades mais ancestrais e que podem mais facilmente ser reestabelecidas através desta terapia. Em diversos estudos de menores dimensões, a música revelou-se como um dos poucos estímulos a conseguir despertar reações por parte dos pacientes e levá-los a interagir com o ambiente à sua volta. [2]

  2. Cuidados Neo-Natais – Um dos principais locais onde a musicoterapia é aplicada é nas Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN). O som de ventiladores, bombas de infusão e de oxigénio, o ruído de macas e o murmúrio de vozes exaltadas são sons típicos que os recém-nascidos prematuros ouvem durante os primeiros dias de vida numa UCIN. Estes sons são quase impossíveis de desligar. No entanto, vários estudos apontam para que a música possa acalmar os bebés pré-termo e os seus pais. Tem-se verificado que a música diminui a frequência cardíaca dos bebés pré-termo, diminui o tempo de choro, aumenta o tempo de sono e pode melhor os hábitos alimentares e o desenvolvimento cognitivo dos mesmos.[4] Para além disto, também se pensa que a música possa servir como elemento de distração para os recém-nascidos, fazendo com que estes se foquem na música e se abstraiam da dor que sentem.[2]

  3. Geriatria – A musicoterapia tem uma vasta utilização na população geriátrica. Serve como elemento de motivação para a prática de atividade física, serve como um elemento capaz de reavivar memórias (todos sabemos que há músicas que guardamos profundamente associadas a lugares, pessoas, momentos, etc.), serve como um promotor da capacidade cognitiva não só por promover a aquisição de novas capacidades como por voltar a acionar capacidades que já possuíamos… E a lista continua. [2]

  4. Psiquiatria – A musicoterapia também é utilizada em diversas patologias do foro psiquiátrico e o mais incrível é que tem demonstrado eficácia em promover o relaxamento, a comunicação, expressão do próprio, capacidade de reflexão e processamento emocional. [2]

A lista de áreas onde a musicoterapia é aplicada continua, assim como as diversas formas em como a música pode auxiliar os pacientes. Existem vários websites e artigos que podem ser consultados.

Contudo, tendo terminado a minha pesquisa intensiva, sinto que ainda há muitos poucos estudos bem desenhados (estudos longitudinais aleatorizados, duplamente cegos e com placebo) e de grande escala que nos permitem tirar conclusões válidas sobre a eficácia que a musicoterapia aparenta ter. Mesmo aqui encontramos um desafio muito importante. Como é que podemos ter um ensaio com placebo duplamente cego para a musicoterapia? O grupo placebo seria um grupo que não escutaria nem tocaria música. Os pacientes deste grupo saberiam que não estavam a fazer musicoterapia, impossibilitando o caráter duplamente cego do estudo. Deixo parar no ar a pergunta de como poderíamos ultrapassar este obstáculo, por forma a podermos contestar ou confirmar muitos destes resultados aparentes.

Aguarda-nos um futuro de novas terapias, algumas menos convencionais que outras, de novas formas de aliviar o sofrimento e de estabelecer contacto com os nossos pacientes e, enquanto estudantes de medicina, temos que estar preparados para encarar estes desafios, saber informar-nos sobre os mesmos e saber informar os nossos pacientes.

Continuo fascinada pela musicoterapia e tão curiosa como da primeira vez que li as palavras “terapeuta musical”. Aguardo, impacientemente, para ver o que o futuro nos trará nesta área.

Fontes:

  1. Florida Hospital for Children. (2018). Music Therapists. [online] Disponível em: https://www.floridahospital.com/children/experience/who-you-meet/music-therapists [Acedido a 13 Set. 2018].

  2. Music Therapy Association of BC. (2018). How Does Music Therapy Work?. [online] Disponível em: http://www.mtabc.com/what-is-music-therapy/how-does-music-therapy-work/ [Acedido a 13 Set. 2018].

  3. World Federation of Music Therapy. (2018). World Federation of Music Therapy (WFMT). [online] Disponível em: https://www.wfmt.info/ [Acedido a 13 Set. 2018].

  4. Novotney, A. (2013). Music as medicine. [online] http://www.apa.org. Disponível em: http://www.apa.org/monitor/2013/11/music.aspx [Acedido a 13 Set. 2018].

Inês Abreu, 4º ano

Ilustração por Ricardo Sá, 4º Ano

TAUROMAQUIA

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A tauromaquia tem-nos sido apresentada como ordem do dia, abrindo jornais televisivos, dando mote a diversas publicações, despoletando diferentes pontos de vista e sendo rastilho para as já habituais ácidas e intolerantes discussões patrocinadas pelas redes sociais.

Acredito que tudo tenha voltado a ser tema de conversa quando, no verão passado, no dia seis de julho, a Assembleia da República chumbou uma proposta do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) que pretendia a abolição das corridas de touros em Portugal. O projeto teve os votos contra do Partido Social Democrata (PSD), Partido Socialista (PS), Partido Centro Democrático Social- Partido Popular (CDS-PP) e Partido Comunista Português(PCP) e os votos a favor do PAN, Bloco de Esquerda (BE) e Verdes. E o que pensam os portugueses? Entendo que estão divididos, opinião que acaba por ser corroborada através do anúncio dos (diria, caricatos) resultados do orçamento participativo português. Se não, vejamos, como projetos aprovados no concurso de âmbito nacional encontramos a proposta número 433, “Tauromaquia para Todos”, integrado na categoria “Cultura”, representando uma fatia de 50 000 euros, mas, para incitar e alimentar a discussão, também verificamos que foi aprovado o projeto número 761, “Portugal sem Touradas”, no domínio da “Educação, Desporto e Juventude”, com um investimento de 200 000 euros. O primeiro defende “a criação de um programa de difusão de informação e conhecimento sobre a cultura tauromáquica de Portugal”, já o segundo, pretende “desmistificar os princípios em que a atividade se autojustifica e contribuir para a construção de um pensamento crítico face à mesma no seio da sociedade portuguesa”. Sendo o orçamento participativo português “um processo democrático deliberativo, direto e universal”, esta escolha acaba por ser representativa da dicotomia de opinião do povo português e algo que tem por base objetivos que colidem.

A mais recente controvérsia sobre o tema, à data da redação deste artigo (e acredito que esta novela não acabará por aqui), é-me apresentada como mais uma “salgalhada parlamentar”. O Governo, através da proposta de Orçamento do Estado para 2019, propõe a redução do IVA de 13 para 6% para a maioria dos espetáculos, tendo como exceções o cinema, os espetáculos de música ao ar livre e as touradas, para as quais mantém os atuais 13%. O BE e o PAN, por recusarem as touradas, pretendem um IVA mais alto; o PCP, o CDS/PP, o PSD e, pelo menos uma parte, a própria bancada do PS, contrariando a opinião do primeiro-ministro, propõem a redução do IVA das touradas para os 6%. Toda esta “contenda” foi exacerbada quando, no debate do Orçamento do Estado para 2019, Graça Fonseca, atual ministra da Cultura, recusou a descida do IVA incidente sobre a tauromaquia de 13 para 6%, dizendo que “não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização”. A juntar a estas polémicas, sendo também curioso mas incongruente, segue-se o facto do Governo manter a taxa reduzida para as prestações de serviços de artistas tauromáquicos e propor, para os ingressos nos espetáculos onde estes intervêm, o IVA a 13%.

Pessoalmente, não consigo conceber a redução do IVA para uma taxa inferior em espetáculos tauromáquicos do que, por exemplo, para assistir a um espetáculo de música ao ar livre, a realização de uma visita ao Jardim Zoológico, a um Aquário ou até a ida a uma consulta veterinária.

Quanto à discussão entre aqueles que defendem e os que recusam a corrida de touros “à portuguesa”, que inclui a atuação dos cavaleiros, pegas e toureio a pé, encontramos, fundamentalmente, como argumentos, por um lado, a defesa das corridas de touros enquanto elemento representativo da cultura portuguesa, a continuação da espécie do touro bravo que é usado quase exclusivamente em corridas de touros, a dinamização económica das regiões onde se promovem estes eventos, a melhor qualidade de vida que é proporcionada aos animais comparativamente aos que estão estabulados e a dignificação do touro, porque acreditam que, assim, atinge como que o apogeu da sua existência ao participar na tourada. Por outro lado, encontramos aqueles que defendem os direitos dos animais, lutando pela erradicação de qualquer atividade que põe em causa o bem-estar animal. Identifico-me com o segundo grupo. É inegável que a tauromaquia representa parte das nossas tradições, mas não me parece que possa ser entendida e defendida como parte da nossa cultura. Manter as touradas com o argumento de preservarmos as nossas tradições, a todo e qualquer custo, parece-me despropositado, assim como entendo que a cultura não poderá estar associada à violência gratuita infligida aos animais.

Sobre o argumento relativo à manutenção da espécie, admito que poderá ser difícil, mas se é tão característica do nosso povo, porque não promover a sua divulgação e valorização como achado autóctone? Desse modo, conseguir-se-ia mitigar ou contrariar as dificuldades económicas das regiões tipicamente tauromáquicas. Já quanto à qualidade de vida animal, não podemos escudar o fim miserável que é dado ao mesmo pela simples justificação da sua sobrevivência. Discutindo a alegada nobreza da luta entre os vários intervenientes das touradas, simplesmente não posso concordar que se trate de uma luta em que os opositores se encontram em pé de igualdade. Com efeito, o animal, naturalmente e por vontade própria não estaria ali, não lutaria e, certamente, não passaria por uma apertada, forçada e muito discutível forma de seleção artificial, onde são testadas tanto as qualidades de transmissão genética das fêmeas como a virilidade dos machos, entenda-se resposta agressiva a estímulos provocados por humanos.

A tourada não é um duelo, é uma luta desigual. Não é crível que o touro entrasse de livre e espontânea vontade dentro de uma carrinha transportadora, quisesse ser espicaçado ou ter os seus chifres embolados, bem como atravessar um corredor que, curiosamente, tem apenas uma saída, enfrentar uma arena ruidosa e luminosa (ou não), para depois ser enganado, provocado, espetado, magoado, esgotado e, possivelmente, abatido. Para mim parece-me óbvio o sofrimento do animal, sobrepondo-se este a qualquer outro argumento contrário. Vivemos no século XXI, num país com tantas e tão bonitas tradições das quais, enquanto Povo, podemos e devemos nos orgulhar, sendo, na minha opinião, dispensável e descabida a continuação desta tradição nos termos e condições em que se realiza atualmente.

Ora, como considero que nada melhor do que apresentar uma história verdadeira para poder ser representativa do ponto de vista de quem a defende, apresento-vos a minha. Quando criança, tinha por hábito ver, em família, sobretudo com o meu avô, as touradas que passavam na televisão. Ficávamos durante horas a fio entretidos, aproveitando para observar e comentar a prestação dos cavaleiros, forcados e de todos aqueles que participavam no que, à época, eu considerava ser um empolgante espetáculo. Com o avançar da idade, cresci e, claro, desenvolvi o meu sentido crítico, podendo dizer que hoje não compactuo com a manutenção do que se considera serem touradas “à portuguesa”, nas condições atuais. Por conseguinte e em coerência, defendo que aquelas devem ser erradicadas da televisão portuguesa. Não porque entenda que com o espectáculo se proporcione o aliciamento das crianças para a esfera tauromáquica, mas porque, ao contrário, podem ferir a sua sensibilidade e, sobretudo, pelo facto de, atualmente, não encontrar quaisquer argumentos que justifiquem o tratamento a que se sujeitam os animais.

Julgo que a realização das touradas à portuguesa, nas condições atuais, não se coadunam com aquilo que defendo como identitário do nosso Povo. Ainda assim, gostava que esta minha história pudesse servir de reflexão e discussão acerca do tema, como acontece dentro da minha própria família, mas nunca enquanto pretexto para alimentar o ódio, como, lamentavelmente, já o temos testemunhado entre quem defende e combate as touradas. Ou seja, também sobre este tema, é preciso mais tolerância.

Já agora, outro testemunho, após a reunião em que ficou decidido que escreveria um texto sobre a tauromaquia, rumei a casa. Era já hora de jantar. Durante a refeição, aproveitei para conversar com as minhas colegas de residência sobre como tinha corrido o meu dia e escutei o que me diziam sobre o seu. Já no final do jantar, deu-se uma grande coincidência, para quem acredita em coincidências, ou acasos, para os que neles não acreditam, quando uma das minhas colegas perguntou se podia mudar de canal televisivo, “passar para a RTP1”, porque ia dar a tourada. Fiquei perplexa com o pedido e manifestei-me contra as touradas organizadas nos moldes atuais. Revelei-lhes que, a propósito, iria escrever um texto sobre a tauromaquia. Trocámos ideias sobre o tema, designadamente o método de escolha das ganadarias, a eventual manutenção das touradas mas noutros moldes que não impliquem o sofrimento e morte do animal, manter a pega dos forcados, acabar com a lide a cavalo ou alterar a forma como é realizada atualmente. Sugeri, escutei, discordei e concordei. No final, as opiniões de umas não se impuseram às demais e, curioso, não chegámos a mudar de canal.

Quanto ao futuro, se me perguntarem se acredito que as corridas de touros irão acabar, respondo que não sei mas espero que sim, defendendo a minha perspetiva. Aliás, se em 1836 as touradas foram proibidas em Portugal, por Decreto, com o argumento de serem “um divertimento bárbaro e impróprio das nações civilizadas, que serve unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade”, não vejo porque não poderão voltar a ser banidas.


Raquel Morgado, 2º ano

Ilustração por Carolina Daniel, 4º Ano